Um camarada chegou no grupão secreto do Crise no Telegram (no qual você pode colar assinando nossa futura newsletter) com sucesso: indicou o disco “O Último Anjo” do DJ Arana, produtor e dançarino bem famoso do funk paulista, com vários hits em redes sociais de vídeos curtos e intensa agenda em festivais pra jovens em estádios Brasil afora que estão abaixo do radar da descolândia. E além de ser bom por trazer uma coleção de músicas boas por si só, é um disco mesmo, com unidade, intenção, começo, meio e fim, coisa rara no gênero desde sempre e ainda mais agora, época de singles, pescaria de vara e não de arrastão, e com sonoridades bem mais variadas do que ele costuma apresentar.
Inclusive antes deste ano ele nem tinha disco, exceto um um de trap com ele rimando que flopou e ele apagou (se ele pixar fecha o bingo do 4 elementos, hein), mas agora tem esse atual e tem um outro disco dele que saiu logo antes, acho, mais na onda do que ele já fazia e inclusive bateu mais, tem um dos sons com mais de 40 milhões só no streaming que eu vi. Mas esse disco do Anjo é o que aponta umas ramificações diferentes dos caminhos sonoros que ele trilha. Tipo assim, se o mandelão mais genérico feito por aí é daqueles filmes de terror realizado a toque de caixa que a gente saca que vai ser um empilhado de clichês sem viço nem auto-ironia e tal só de ver o cartazinho ali na tela, esse lançamento aqui tenta ser o Pecadores.
Ele nunca foi dos mais barulhentos do funk mandelão, esse guarda-chuva (chamam aqui de umbrella, culpa da Rihanna, enfim) de música eletrônica periférica paulistana de pista, vem sendo menos ainda nos últimos dois anos e segue nessa aqui. O funk de pista dele vai bem menos pra música concreta (aka sonoplastias à guisa de instrumentos etc) e ataques pontuando ritmo nessas do que no meio chamam de rock – muitas vezes dá pra pinçar influência de new metal dietético pra rádio nos mandelas, o que me parece fazer sentido pra memória emocional dessa juventude, cresceu exposta a isso pelos meios de comunicação, coitada. Na sua caminhada Arana amealhou sucessos estrondosos nos bailes e TikToks da vida, nas playlists e fluxos, garantindo muitas apresentações em chopadas de Economíadas e coisa que o valha, e ainda assim cult o suficiente pra também estar em coletânea gringa cool já que o som é sim maluco o suficiente.
Começa com uma introdução que à primeira vista seria um hip hop gospel, só que nem. E emenda em funk putaria. Essas duas primeiras são, noves, fora, uma sequência de trip hop, mesmo e quiçá principalmente por causa das letras dúbias e do beat bolha atmosférico enterrado na segunda. O disco abre com uma batida cadenciada, arrastada no balanço, com um vocal em inglês: é tirado dum refazimento indie (não vou caguetar, ser X-9 de sample é escolher ser uma triste engrenagem do Complexo Industrial-Musical gratuitamente ainda) de “Me and the Devil Blues” do Robert Johnson. De rolê com o diabo, que se fosse em português era ponto muito alto do trip hop Brasil sim, ainda mais em consonância com próxima, chega infernando mesmo, anunciando que tá logo ali, virando a esquina. Ou aqui, já que sobrevivemos. Ao longo do resto do disco ele vai discutir sonoramente a que custo. Do pouco que conheço, não é a primeira vez que ele mexe com esses conceitos de céu e inferno, diabo e anjo (no próprio som da coletânea gringa tem um lance assim).
O barulho da bruxaria enquanto ataque quase nem vem, as texturas e dinâmicas de estilos musicais de rave modelam os assuntos sonoros do funk de SP (buzinas e apitos por exemplo), até se envolvendo nas brumas que são as sonoridades mais etéreas de BH. E pisa nuns lances bem eurodance também. Ele não abandonou dissonâncias, mas deixa o barulho mais geral, como de papel de parede, pano de fundo ao seu serviço. É bem de pista de outra forma que as coisas dele já eram de pista, como se o que ele vinha fazendo não funcionasse mais tanto (conversando sobre no grupão pessoal confirmou que ele deu um papo nesse sentido, inclusive, que ele queria mandar umas parada pra além de automotivo/ bruxaria/ritmada que ele não tá vendo estourar tanto). Tudo parece indicar sensibilidade quem manja pista, mas não em condescendência, e sim em proposta.
O som dele com o d.silvestre, cujo ótimo “O Que as Mulheres Querem” resenhei (em vídeo, tem nesse link e lá numa aba do nosso Insta) esses tempos, começa com um sample bem do proibido, lamento, e depois vira pra outra coisa mais interessante até, que usa essa primeira parte de introdução narrativa. É sim a jornada dum anjo caído que ainda assim é bom. E que tá sujeito aos revezes do mundo como ansiedade, na a oposição rua x quarto/lar. Primeiro pensei que a dicotomia era tematizar bem essa coisa crente de ser do mundo versus estar na igreja, crente com droga quente pra parafrasear um dito popular chulo aí, sem rigor nenhum, já que 🍬 beleza, já lança (de 🥥) deixa os 👣 🧊, né? Mas tem mais nuance que isso: o sexo, tema constante, não soa nem tão culpado e nem tão raivoso, punheteiro. É uma obra narrativa que tem sujeito na jogada,
Os vocais de MCs de funk (Nito, Manhoso, Dorival, Morena, Máscara, Fabinho da Osk, Larissa) são tratados quase sempre como colagens, montagens, scratches e samples, os dos dois MCS de rap/trap — tem som com Leviano, e um dos sons bônus com refrãozinho chiclete com Major RD — não. A voz da faixa final também, e é cantada, o que significa isso, e o que significa essa cantoria ser um ponto de macumba? E sim, a música religiosa afro-brasileira é uma das partes componentes das principais batidas de funk, dá a cadência, mas falo aqui da melodia e letra. É o cantor umbandista com visu de trapper (ó lá de novo), o fenômeno nas quebradas Joia do Couro com letra pra entidade Maria Padilha num tapeçaria de soul brasileiro trip hop (de novo) com cadência malandra de funk (sempre), uma célula rítmica bem foda inclusive. O refrão é do ponto de umbanda Maria Mariá, com uma letra que eu mesmo não conhecia. E daí que o disco traz aquela melancolia raivosa de quem tá voltando pra casa só na segunda amanhecendo. A claridade resoluta e intoxicada que se encontra, inclusive, no melhor do trip hop.

