Desenho à lápis do logotipo Racionais bandeira cadeia

O Raio-X do Brasil

A versão original desse desenho é preto e branco e aparece enquadrada (embolada) pelo círculo duma bandeira do Brasil, essa sim colorida em verde e amarelo, na parte central inferior da capa, canto superior esquerdo da contracapa e em em duas versões no selo interno de Raio X Brasil – Liberdade de Expressão, terceiro lançamento próprio do grupo Racionais MCs em vinil: aparece nessa mesma versão bandeirosa descrita na metade superior do selo (a etiqueta no centro do disco) no lado A, que tem abaixo do furo a ordem de todas as faixas, seus créditos e informações e logo da gravadora independente Zimbabwe Records; e estourada só o PB cobrindo todo o selo do lado B. Parece que essa nova bandeira brasileira, com o desenho ali dentro ao invés do adágio positivista e suas estrelas em azul e branco, é repetida em sua arte até perder seu prumo e quedar só com sua essência no selo do lado B, informação gráfica final do disco. Essa é das imagens mais importantes, brutais e perenes e onipresentes da vida cultural brasileira a partir desse disco aí, “Gravado: Verão de 93” informa impresso em letras vermelhas na contracapa. Por conta dos samples, esse disco tem agradecimentos e ao Jorge Ben Jor e ao Tim Maia, pelo uso de samples em “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada”, respectivamente, e por causa da colagem em “Mano na Porta do Bar” (obrigado, DJ Roger), ao grupo M.R.N. — que seria preso com eles no ano seguinte por conta do que haviam cantado no evento Rap no Vale, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. A matéria da época no jornal Notícias Populares, afiliado à Folha de S. Paulo feito pra pobre, é seca, incompleta e brutalizante. Leia, ali também figura a ameaça de encarceramento que paira até hoje sobre o grosso da população brasileira retratada pelo Racionais. Esse foi o disco que colocou o grupo no mapa do país. O Holocausto Urbano anterior trazia a síntese da nova linguagem do jovem rap brasileiro, militantemente negro, seriamente nervoso e violentamente pacífico e foi um terremoto entre os convertidos. Este novo lançamento foi a caixa de Pandora, baú de pirata que, com esse resgate do soul nacional, trouxe pra até quem não queria ter o vislumbre de um outro Brasil à vista. Abalou o país, após apavorar a cidade. 

A imagem icônica é creditada junto com o lettering como “Logotipo Racionais, Bandeira: Edmilson” com quase uma casa inteira entre Ed e milson que não se repete no resto dessa ficha técnica, toda com a mesma fonte, como se esse nome sem sobrenome tivesse seu próprio sobrenome e não um imposto a si, mas certamente apenas coisas analógicas. Também foi capa do primeiro CD do grupo, uma coletânea com os três primeiros trabalhos deles antes só disponíveis em vinil. O homem negro inconformado e posturado com suas mãos segurando as grades como que para ao mesmo tempo destroçá-las e reforçar o terror físico absurdo, o absurdo da existência dessas grades, é a imagem mais brutal desenhada em nosso país durante toda a década de 1990, e provavelmente depois, e não há escatologia metal punk que chegue perto. Que a capa do Raio X seja de grafismos em cima duma foto mais do que real, as linhas vermelhas vazadas com título emolduram o instantâneo e tarjas cobrem olhos de detentos amontoados na grade duma cela, repito, a nova bandeira do Brasil estreia na composição desses grafismos, não exatamente em seu centro, mas abaixo no plano, ainda assim uma bandeira hasteada ali acima do nome do grupo, um símbolo por cima da imagem retrato da realidade multiplicando urgentemente a sobrecarga sensorial. A coleção de músicas e a capa dedicada a ela é arte sobre o que já está tarde demais. E ficou, onipresente no país desde então. Em camisas, adesivos em para-brisas e vigias e para-choques, capacetes e baús e carenagens, camisetas, adesivos, tatuagens. A população conseguir dar uso corriqueiro pra uma imagem tão cruel, se identificar com esse símbolo de denúncia de exclusão, se identificar como oprimido pelo Estado, a necessidade dessa identificação ser compartilhada com o convívio não pode ser vista enquanto pouca coisa. Esse é o tamanho do problema. 

Assistir a um careca representante do Estado mentir que uma letra de funk causaria mais dano à uma criança do que um tiro de fuzil sem ser questionado, na real sem no mínimo ser defenestrado de seu cargo, exposto ao escrutínio público com sua lustrosa refletindo sebo em capas de jornais e casas de portais foi a entrada perfeita do menu degustação da luta de classes Brasil edição racismo que nos fora ofertado. O prato principal sendo a coerção indevida do Poze do Rodo – os braços pra trás do corpo, imobilizado com algemas como se tivesse poderes de fuga de Batman ninja ou, vamos ser realistas, enquanto pantomima de tratar violentamente alguém pras câmeras pra implicar que o sujeito seria ele sim violento, a justificativa dos canas com seus coletes iguais e caras quase iguais de viciados em reels implícita ali, pras lentes se enamorarem do picadeiro. Foi dali até a sobremesa, os fãs do cantor sendo rechaçados a spray de pimenta e balas de borracha na comemoração de sua soltura. A sentença de soltura foi coisa de algum desembargador, um mínimo de lição de casa, um ato feito pra ganhar tapinha nas costas de seus pares, como se não bastassem os vencimentos salafrários e a blindagem midiática (ênfase no “algum”). 

O MC Poze do Rodo (Marlon Brendon Coelho Couto da Silva) foi preso no dia 29 de maio de 2025 por agentes da Delegacia de Repressão aos Entorpecentes (DRE) dentro de sua mansão, num condomínio de luxo no Recreio dos Bandeirantes (ali do lado da Barra da Tijuca), zona oeste do Rio de Janeiro, acusado de “apologia ao crime” e “envolvimento com o tráfico de drogas”. Cinco dias depois, em 2 de junho, o desembargador Peterson Barroso, da Segunda Câmara Criminal, concedeu um habeas corpus determinando a soltura do MC, afirmando que “aqueles que levam fortuna do INSS contra idosos ficam tranquilos por nada acontecer e, ao mesmo tempo, prende-se um jovem que trabalha cantando e ganhando seu pão de cada dia, podendo responder à investigação e processo criminal em liberdade. Tais extremos não combinam”. Na sua liberação, foi recebido com festa por cerca de 300 fãs e familiares em frente ao Complexo de Gercinó, incluindo a presença do MC Oruam, filho de Marcinho VP (o ruim, que matou o bom, lá nos anos 1990). A polícia, em sua benevolência típica contra a molecada de favela, atacou com balas de borracha e spray de pimenta. Após ser libertado, MC Poze, que lembrou que “meus filhos têm trauma da polícia”, declarou: “Eu sou trabalhador e artista. Inclusive, eu saindo lá agora, uma recepção maravilhosa, de milhares de fãs, e o tratamento foi spray de pimenta e tiro de borracha na cara. Aí eu me pergunto: eu que sou bandido?”.

O Poze discursando que é trabalhador e que os canas traumatizaram seus filhos e o pessoal comparando com general golpista que os canas deram uma semana de arrego pra prisão não impactar os netinhos do dito cujo (pras descendentes, se for o caso de existência, é só não casar que também ganham aquele dinheiro fácil do glorioso Exército brasileiro eternamente ou não é assim que funciona? Já nem sei mais). 

Gente muito da qualificada se mobilizou e suou individual e coletivamente pra reverter uma série de lucrativos equívocos: a filiação ao Comando Vermelho na ficha de admissão ao presídio, o que letras do funkeiro retratariam e qual a diferença entre o crime e o funk, os tratamentos peculiares dados ao artista e ao político que gostaria de ser artista Roberto Jefferson (já ouviram o CD dele? Versões de rock de velho rico do clube de moto criminosamente ruins) que recebeu harmonicamente os harmonizados com bala e granada e nem um cutucão levou, o comportamento perene das forças de repressão em relação à cultura afrobrasileira, desde antes do samba ser samba até, e finalmente da brutal armadilha racista utilizada por aquela porra de promotor sim, mas também pela mídia, hereditária grande com concessão ou não, de rede social e nicho também, e finalmente adubada pela zé povinhagem geral, que é fazer sempre a discussão ser cair em areia movediça: a pessoa ter que se justificar que é uma pessoa até submergir exausta. 

Essa não foi a primeira vez que Poze foi detido por seu suposto “envolvimento com o tráfico” e a tal “apologia ao crime”. Em 2019, quando começava a cantar fora do Rio de Janeiro na esteira do seu primeiro hit nacional, “Tô Voando Alto”, ficou detido por alguns dias em Sorriso, no Mato Grosso. Além das acusações de sempre como “apologia”, ele também havia sido acusado de ter organizado o baile no qual se apresentava, no qual a polícia afirmou haver menores de idade consumindo álcool e “drogas”. Estava longe de ser a primeira vez que o polícia brasileira prendia músicos de origem periférica por não gostar do som. A história é antiga, e vem de antes, mas um momento emblemático foi a detenção para depoimento dos Racionais Mcs e do MRN durante um festival no Vale do Anhangabaú, na capital paulista, em 1994 – o “crime”, novamente, a tal “apologia” (uma reportagem da Folha na época, cheia de erros, mostra como a grande imprensa nacional sempre tratou com muito cuidado o hip hop). Os Racionais e seu público seriam perseguidos pela polícia ao longo das décadas: em 2007 a PM acabou violentamente com um show do grupo durante a Virada Cultura, e em 2024, logo após show do grupo na festa de aniversário da escola de samba Vai Vai, os gambés voltaram a atacar, no mesmo Anhangabaú de 30 anos antes. 

Os Racionais estão longe de serem o único grupo de hip hop perseguido pela polícia. O Facção Central, conhecido pelas letras de gangstar horrorcore de Eduardo Taddeo, perdeu as contas dos problemas causados pelos canas. Como lembra o MC paulista Jamés Ventura: “eu era adolescente, começo dos 1990, estava na saída da escola lá no Glicério (bairro pobre no centro da capital paulista), e a gente viu o Eduardo, aquele buxixo ‘olha o cara do Facção, legal demais, aqui da quebrada’. Logo baixou uma barca da Rota e pararam todo mundo para revistar. Pegaram uns papeis no bolso do Eduardo, letra de música e pimba: levaram ele para a delegacia”. A perseguição ao Facção não se dava só em SP: por exemplo, em 2015 a Polícia civil se achou no direito de proibir um show do grupo em Florianópolis, e em 2024 a PM de Minas Gerais interrompeu uma apresentação solo de Eduardo Taddeo, já fora do grupo. Como violência é mato no Brasil, ainda no mesmo ano, um PM em São Paulo executou com oito tiros um sobrinho de Eduardo na porta de um mercado da rede Oxxo. Grupos de outros estados também estão sob a mira da “lei” contra o “crime” de “apologia”, como o emblemático caso do Planet Hemp, que depois de anos de perseguição, foi preso em novembro de 1997 em Brasília após um show para 7 mil pessoas, enquadrados no artigo 12 da então Lei de Drogas (o mesmo reservado ao crime de tráfico) pela tal “apologia”.

A história desse tipo de perseguição é antiga também no funk: antes de se tornar famoso internacionalmente por conta de Tropa de Elite, o “rap das Armas” de Junior e Leonardo rendeu dor de cabeça aos autores. Principal nome da dupla, Leonardo foi convocado a depor em um inquérito: “A delegada quis saber como é que eu fiquei sabendo os nomes das armas. Eu disse que lia o jornal. Não precisa perguntar a vagabundo, é só ler o jornal do dia”. O subgênero do funk que falava sobre o crime acabou apelidado de “proibidão”, não à toa: em 2005, a Polícia Civil do Rio de Janeiro incluiu 13 MCs em um inquérito sobre a famigerada “apologia”. Não que fosse melhorar nas décadas seguintes, como em fevereiro de 2021, quando o MC de trap funk paulistano Salvador da Rima, autor de “Vergonha Pra Mídia” (do clássico refrão “Tem que colocar o cuzão do Datena no ar/ E falar que os mandrake deu perdido na polícia”) foi enforcado e detido por oito horas pela PM paulista por “desacato”. 2025 tem se mostrado um ano bem prolífico no ataque ao funk, com a instauração da “CPI dos Pancadões” na Câmara Municipal de São Paulo (liderada pelo recémcassado vereador Rubinho Nunes), projetos de lei para a proibição do rap e do funk em escolas em Belo Horizonte e a onda de projetos de lei chamados de “anti-Oruam” em Câmaras de Vereadores país afora, invariavelmente patrocinados pela extrema direita.

Então a luta de classes racista foi posta aí no que você quiser considerar como mesa, e sim, ao mesmo em tempo que pipocam CPIs anti-funk nas Câmaras Municipais de capitais como São Paulo e BH, levadas a cabo por gente da mesma pocilga ideológica do topete lá que recebe gambé a granada e fuzil, pouco mais de um ano depois do lançamento de O Fim da Beleza, o mocumentário no armário da Brasil Paralelo que é a maior peça de agit prop fascista da Guerra Cultural, se não em qualidade, certamente em esforço e investimento de plataforma. Pra quem vem ciscando na esteira dos think tanks bancados pelos Koch há mais de uma década, como os sicofantas engendrando as CPIs e sua plateia, convenhamos que funcionou.

Pra além de articular desse jeito acima, indexando, a cronologia desse golpe, o infográfico dessa mazela, já que voltaremos muito a isso nos próximos anos – não se engane, essa é sim uma das batalhas fundamentais da sua vida, de longe –, é importante acrescentar um detalhe. O entendimento do funk enquanto retrato, forma e conteúdo de expressão periférica é preciso, e é um dos acréscimos de camadas necessário pra receita de redução de danos de papo bosta que transbordaram, transbordam e transbordarão dos celulares postos em marcha por aquela série de pessoas que, repito, foram muito preparadas, em forma e conteúdo, pra serem a massa de manobra puxando a opinião pública pro lado deles, em última instância, atacantes anti arte, guerreiros de teclados pra normalizar a repressão enquanto senso comum, massacres em fatos civilizatórios e base mínima pra possibilitar o convívio. E depois disso ainda  reafirmar que a música é música, aquela coisa, ficção é ficção, gente é gente (saca?). Mas mais que isso, sua concatenação ao todo da música brasileira é inescapável, ainda mais sendo carioca e o começo da música gravada comercialmente ser no Rio, o começo da indústria fonográfica nacional foi justamente lá e a sua decomposição em Complexo Industrial-Musical tem formação sócio-espacial lá também. E nessa, a música quando nasce brasileira já vem comentarista da sociedade, e em tempo real, e com consequências brutais. Isso é diferente de outros países, principalmente dos EUA, com quem tanto ainda temos uma relação espelho em linguagens culturais (na época do começo da gravação e comercialização de discos eram países europeus, mas mais sobre isso tudo muito em breve, quase juro). Só de exemplo, já que não foi o primeiro, nem o último e muito menos o pior caso desses documentado, mas depois do Carnaval de 1922 o cantor e compositor Sinhô teve que se esconder da polícia por conta do sucesso da marcha “Fala baixo”, que desancava o então candidato Arthur Bernardes (PRP), eleito presidente no final daquele ano. 

A filiação ao Racionais de ser contra a música ser pra todo mundo, já virou 180º, é de nicho pra ser pra gente básica e não é por ser quebrada que é nicho, é o nicho de massa sim, todo mundo quer ser quebrada, até o prefeito de S. Paulo.

As perseguições a figuras do funk e do trap não pararam com a soltura de Poze. Oruam voltou à cadeia em em julho, e ficou em cana até setembro, quando conseguiu a oportunidade de responder a investigações do MP fluminense em liberdade. A tal Lei anti-Orum tem conseguido avanços: uma versão dela foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte em meados de novembro, e Kim Kataguiri (lógico que Kim Kataguiri, União-SP) tenta enfiar uma emenda do mesmo teor na complexa Lei Antifacção discutida nacionalmente na Câmara dos Deputados. E São Paulo também ganha seu destaque: em outubro o influencer de funk, rifas e tigrinhos Buzeira foi preso em investigação da Polícia Federal – e seguia em cana até o momento desta publicação.

Daí que o careca e todo o regozijante arcabouço racista que veio a reboque querem matar o que é o Brasil. Mediram a água da banheira. Muro tava baixo. De lá pra cá prenderam e soltaram o Oruam, intensificaram uma ofensiva contra influenciadores de periferia que supostamente lavariam dinheiro do crime e só contra eles. Daí dia 28 de outubro a extrema-direita, acuada há um tempo e com cana no horizonte, pra si e seus líderes, se articula pra colocar em prática o plano estratégico de ganhar eleição: chacinar mais de uma centena, dizer que geral era criminoso e que quem defende que se cale senão vai ser tirado de pior. A imprensa ajuda como ajudava em 1994. O céu desabar em grades sobre nossas cabeças serve pra isso. 

Pensei no logotipo Racionais bandeira como exemplo mesmo das diferenças entre a normalização da crueldade entre oprimidos reclamando símbolos pra sobreviver, se reconhecerem enquanto não permissão, a recusa da condição de massacrados, chacinável, usado enquanto identidade, e a normalização no papinho opressor (chacina como vontade de poder e triunfo da vontade). E dá pra entender os Racionais terem deixado de usar essa imagem, afinal também virou das pessoas (do Sabotage também, né) e enquanto pólvora e sal na ferida mesmo.  

Desde o começo, e vamos aqui tratar o caso do Poze como começo pra fins de papo, sendo que tá mais de 500 anos longe disso e até 1994 já citamos, geral tá sabendo, uma esquerda carola e acovardada tomou as redes pra dizer que essas não seriam nossas batalhas, afinal de contas, esses suspeitos são mesmo suspeitos aos olhos dessa gente de bem, apressada, católica. Lendo jornal, satisfeita, hipócrita. Com raiva por dentro, a caminho do centro. Olhando pra cá, curiosos, é lógico, não, não é não, não é o zoológico, mas vidas que não tem tanto valor quanto o seu celular, seu computador. Repito: essa foi, é e será a luta mais importante de nossas vidas. 

  • André Maleronka é diretor criativo e ⅓ da Caro Vapor Vidas. Ombudsman do mundo no Crise Crise Crise, comandou a redação da VICE durante a existência do veículo no Brasil. Antes disso publicou em Rolling Stone, Overmundo, +Soma, Agora SP, EleEla e Trip. Art punk.

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