Foto de Jards Macalé por Debora Oliveira

Morbeza

Jards Macalé 1943-2025

(foto de Jards Macalé por Debora Oliveira)

Fica essa impressão que o Jards gostaria que seu obituário fosse, no mínimo, notícia no Pasquim, no Ex-, no Versus. Desses jornais restam exemplares e fac-símiles, agora dele restam também as obras, um tanto do resultado do que foi. Coisa esquisita. Fica essa impressão porque ele gostava mesmo é da rapaziada, de perambular por aí, às vezes como o coro grego dum homem só, tipo quando foi o violeiro cego Firmino n’O Amuleto de Ogum, mas também coro grego em sua obra por indicar contextos e narrar o que tava na mente de geral antes de que geral se desse conta, dar o mapa dos meandros do som e do papo da hora, como em “Gotham City” e dai pra sempre.  Às vezes mais juntão do que se entendia como tradição da música brasileira como em “Choro de Arcanjo” ou arquitetando a própria com Gal e Caetano.  

O violão enquanto guitarra do Jards era todinho dele, peculiar e indecentemente pessoal como os violões enquanto guitarras do Brasil do Jorge Ben e do João Bosco, o dele todo blues, junto com aquela voz meio embargada de cantor de rádio no fim da noite. Grande roqueiro brasileiro, sambista bluesman. Dessa intersecção entre samba e blues, além de muito som foda, também saiu neologismo: “morbeza” (não confundir com “morabeza”, de Cabo Verde). É algo entre o “mórbido” e a “beleza”. Ele explica em entrevista de 1973 ao Opinião: “Nós assumimos a consciência desta morbeza romântica como uma forma de elevar ao máximo grau a herança romântica que trazemos, porque esta herança é a própria música brasileira, é tudo, é Lupicínio Rodrigues, é Nelson Cavaquinho, são os choros, as modinhas, é todo o romantismo”.

E assim viveu sem nenhum hit, de lá pra cá com poucos e bons discos, e depois mais agorinha, pra não perder o costume, com gente muito da boa das novas gerações de música brasileira e com outros antigos jovens há mais tempo como ele também, nos parece, sem muito interesse em pagar simpatia não. Tá ali nos streamings sem crédito sendo genialmente fantasmagoria bêbada prum júri em “Estrupício” do Itamar com as Orquídeas, no disco tem tudo escrito certinho, nos parece que tudo tudo bem.  

Troço esquisito isso de obituário. Da minha parte, enquanto fã e jornalista, e vice-versa, assisti a algumas apresentações dele e o entrevistei uma vez. Ele faria um show em SP e a assessoria ofereceu o papo por telefone pro jornal em que trabalhei um pouquinho, o extinto Agora SP, o pra pobre de então da Empresa Folha da Manhã, e marquei. Sabia que não seria publicado, mas quis ter a oportunidade de conversar com ele. Lembro que achou o maior barato dar entrevista prum jornal popular, ele ficou super feliz. Não tive coragem de dizer que não iria pro impresso (e online mal se aplicava na época), um dia juro acho essas anotações. Fui ao show dias depois, era voz e violão, contando histórias entre as músicas, a proposta era justamente essa, tava na divulgação. Ele pediu um cigarro já que tava proibido de fumar, e naquele teatro era proibido também. Cedi, acendi pra ele, umas pessoas riram, alguém reclamou. Mal deu tragos, ficou ali, cigarro de incenso queimando na mão do violão, jogando solto. Vi outros tantos shows, diferentes formações, todos incríveis e com essa mesma graça, mesmo em palco alto tava pertão, do lado, assombração possível. 

Muito obrigado por tanto, amigão. 

  • André Maleronka é diretor criativo e ⅓ da Caro Vapor Vidas. Ombudsman do mundo no Crise Crise Crise, comandou a redação da VICE durante a existência do veículo no Brasil. Antes disso publicou em Rolling Stone, Overmundo, +Soma, Agora SP, EleEla e Trip. Art punk.

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