Um dos efeitos deletérios da popularização de conceitos mais opacos é que, muitas vezes, qualquer doidinho (de palestra ou não) aparece para falar merda sobre algo que, sem dúvida nenhuma, não leu. Filósofo e crítico cultural bola da vez, Mark Fisher tem sido alvo de muitas dessas cagadas, algumas menos graves e outras completamente insanas – caso dessa que venho humildemente apresentar a nossos leitores.
Com pouco mais de 7.500 seguidores no Instagram e um recém-criado Substack, a plataforma 300noise me parece uma tentativa, por ora frustrada, de algum grupo de publicitários se embrenhando no mundo da crítica musical – algo que seria criado pela Box 1824 ou pela Obvious.cc. Pique boy padrão: lindo de cara, até abrir a boca.
Pois bem, eis que o sicofantismo aural da vez é uma lista de “tendências musicais para 2025”. Ao largo de uma análise geral, quero só chamar a atenção para um erro conceitual grotesco no meio dessa pataquada toda.
Vejam bem, vejam bem. Olhem o genial slide publiça sobre assombrologia (tradução de “hauntology” consagrada pela editora Autonomia Literária, casa de Mark Fisher em pt-br, para seu livro Fantasmas da minha vida) em seu perfil no Instagram:
Mas que porra é essa? Porque, assim, se há uma única coisa que assombrologia não é, é um “hedonismo focado no indivíduo”. Não faz nenhum sentido. Mas antes de sentarmos para explicarmos um pouco melhor sobre o termo, vamos sacar o que dizem em sua primeira newsletter do ano, vai que lá explicam POR QUE CARGAS D’ÁGUA RESOLVERAM METER ESSE LOUCO.
Vejamos:
“Hauntologia
Se nossa reflexão vai ao encontro da desesperança e das saídas que os processos criativos buscam, não podemos deixar de falar sobre a válvula de escape pautada em hedonismo. Se usamos o termo hauntologia, não é somente para evocar o neologismo proposto por Jacques Derrida e repensado por Mark Fisher para trabalhar a noção de um futuro perdido, mas para buscar elementos do fenômeno dentro da própria trajetória da música pop. E nesse sentido, você não pode deixar de ler ESSE TEXTO para entender sobre o que estamos falando.”
É o que???
Nem uma IA falida como o ChatGPT seria capaz de produzir isso. Antes mesmo de citarmos a obra de Fisher em si, uma olhada nos links citados:
A Wikipédia, onde sei lá qual editor escolheu “fantologia” para se referir a assombrologia, cita o uso de Fisher para a expressão como: “uma estética musical preocupada com esta disjunção temporal e a nostalgia de ‘futuros perdidos’. Os chamados músicos ‘fantológicos’ são descritos como exploradores de ideias relacionadas à disjunção temporal, retrofuturismo, memória cultural e a persistência do passado”. Nenhuma, uminha que fosse, menção a “hedonismo”.
Já o link para um artigo no Medium assinado por um elusivo “Mister M” é uma espécie de fichamento de “Another Grey World”, traduzido como “Um outro mundo cinza” no Fantasmas da minha vida da Autonomia Literária. O texto do senhor de todos os sortilégios foi publicado em 2020, dois anos antes da tradução da Autonomia. Certo ele: eu me fortaleço na sua falha, já dizia o mestre Chorão.
Nele, o único momento em que “hedonismo” é citado é no seguinte parágrafo:
“O incentivo cultural para recorrer à música de festa como um proxy para qualquer festa da vida real continua a crescer em uma sensibilidade neoliberal que favorece o excesso do livre mercado, mas proíbe qualquer hedonismo na práxis.”
Certo, agora me digam se algum dos dois textos autoriza a abestada escrita sobre uma “válvula de escape pautada em hedonismo”. Pois é. Mas agora vamos a Fisher:
“A assombrologia é, então, uma tentativa de reviver o sobrenatural ou apenas uma figura de linguagem? A saída para essa oposição inútil é pensar na assombrologia como a agência do virtual, entendendo o espectro não como algo sobrenatural, mas como aquilo que age sem (fisicamente) existir.”
Tá lá na página 37 de Fantasmas da minha vida, no texto “O lento cancelamento do futuro”. O que assombrologia tem a ver com hedonismo? Porra nenhuma. Tem a ver com estratégias (inicialmente, quando Fisher passa a usar o conceito, sonoras) de se fazer presente sem se estar fisicamente ali. Como este humilde escriba anota na apresentação do mesmo livro, na página 10:
“Para Fisher, tanto o jungle emocional de Burial quanto as lembranças melancólicas do Ghost Box dialogavam com o mesmo mal do século do capitalismo tardio, a sensação de que algo se perdeu no caminho e que a comodificação da vida cotidiana não responde às necessidades subjetivas (e, depois da crise de 2008, materiais) do ser humano”.
Existem 8 (oito) menções à “hedonismo” ou semelhantes ao longo do livro. Sete delas no ensaio resumido pelo paladino mascarado, “Outro mundo cinza”. Mas elas não são um incentivo para “se perder no hedonismo”. Na verdade, Fisher passa todo o texto refletindo sobre como essa imagem de “estar sempre curtindo” é mentirosa e trai certa melancolia. Um trecho abaixo, página 213:
“Uma tristeza secreta se esconde por trás do sorriso forçado do século XXI. Essa tristeza diz respeito ao próprio hedonismo, e não é nenhuma surpresa que seja no hip hop – um gênero que se tornou cada vez mais alinhado com o prazer consumista nos últimos vinte anos – que essa melancolia tenha sido registrada de forma mais profunda.”
Ou seja, de onde caralhos a turma do 300noise tirou essa ideia de “vamos dançar enquanto o mundo acaba” como sinônimo de “hauntologia”? Das próprias nádegas, certamente.Eu poderia mostrar mais sobre a melancolia fisheriana (afinal,é o Walter Benjamin do século XXI), apontar referências em Realismo capitalista e em textos do blog k-punk, mas infelizmente tenho que voltar logo ao trabalho de revisão de Desejo pós-capitalista, novo título de Fisher vertido para o pt-br que já está em pré-venda no site da Autonomia (com o cupom #crisecrisecrise você ganha 25% de desconto em todos os títulos da editora, exceto pré-venda!). Mas é aquilo, leitor, ouça sua mãe: estude para não ser burro e acabar sendo xingado na internet.