Um dos mais celebrados autores do pós-2ª Guerra, Thomas Pynchon teve um longuíssimo hiato na sua produção entre o lançamento de Arco-Íris da Gravidade (1973) e Vineland (1990), recém adaptado (erraticamente) para o cinema como One Battle After Another [Uma Batalha Após a Outra), de Paul Thomas Anderson. Uma das poucas exceções nesse período foi o artigo “Is It OK To Be a Luddite?”, publicado em 1984 (ano em que se passa Vineland) no The New York Times. Com a adaptação bombando nas telonas e nas redes sociais e com os temas debatidos por Pynchon (como inteligência artificial, o debate entre os “tipos de inteligência” e Frankenstein) em alta, achamos que era a hora dos falantes de português conhecerem o texto, traduzido por euzinha com uma mão do sagaz André Maleronka (que inclusive desenhou nosso Frankenstein Com Parafuso no Pescoço). É isso, boa leitura e qualquer violação, reclamar na boca.
Link para a versão original do artigo: Thomas Pynchon, Is It O.K. To Be A Luddite?
É de boa ser um ludita?
por Thomas Pynchon
Como se estarmos em 1984 não bastasse, é também o ano do 25º aniversário da famosa palestra “The Two Cultures and the Scientific Revolution” ´[“As duas culturas e a revolução científica”] de C.P. Snow, importante por seu alerta de que a vida intelectual no ocidente começava a ficar cada vez mais polarizada entre facções “literárias” e “científicas”, cada uma condenada a não compreender ou considerar a outra.A palestra tinha como objetivo original abordar questões como a reforma curricular na era do Sputnik e o papel da tecnologia no desenvolvimento do que logo seria conhecido como o Terceiro Mundo. Mas foi a formulação da tese das duas culturas que chamou a atenção das pessoas. Na verdade, ela causou um baita fuzuê na época. A alguns pontos já simplificados, foram feitas reduções adicionais, provocando certos comentários, xingamentos e até mesmo réplicas destemperadas, dando a todo o assunto, embora atenuado pela névoa do tempo, uma aparência irritante distinta.
Hoje em dia, ninguém sairia ileso ao fazer tal distinção. De 1959 até agora, passamos a viver em meio a fluxos de dados mais vastos do que qualquer coisa que o mundo já tenha visto. A desmistificação está na ordem do dia, todos os segredos estão sendo revelados e até começando a se misturar. Suspeitamos imediatamente do ego frágil de pessoas que ainda tentam se esconder atrás do jargão de uma especialidade ou fingir ter acesso a algum banco de dados eternamente “além” do alcance de um leigo. Qualquer pessoa com tempo, alfabetização e dinheiro para pagar o acesso hoje em dia pode obter praticamente qualquer conhecimento especializado de que precise. Portanto, nessa medida, a disputa entre as duas culturas não cabe mais. Como uma visita a qualquer biblioteca local ou banca de revistas facilmente confirmará, agora existem muito mais do que duas culturas, de modo que o problema realmente se tornou como encontrar tempo para ler qualquer coisa fora da própria especialidade.
O que persistiu, após um longo quarto de século, foi o elemento do caráter humano. C.P. Snow, com os reflexos de um romancista, procurou identificar não apenas dois tipos de educação, mas também dois tipos de personalidade. Ecos fragmentários de antigas disputas, de ofensas inesquecíveis sofridas no decorrer de longas conversas à mesa, podem ter ajudado a formar o subtexto da afirmação desmedida, e por isso célebre, de Snow: “Se esquecermos a cultura científica, então o resto dos intelectuais nunca tentou, quis ou foi capaz de compreender a Revolução Industrial”. Esses “intelectuais”, em sua maioria “literários”, eram considerados por Lorde Snow como “luditas naturais”.
Exceto talvez pelo Smurf Gênio, é difícil imaginar alguém hoje em dia querendo ser chamado de intelectual literário, embora isso não soe tão mal se você ampliar o rótulo para, digamos, “pessoas que leem e pensam”. Ser chamado de ludita é outra questão. Isso levanta perguntas como: há algo na leitura e no pensamento que levaria ou predisporia uma pessoa a se tornar ludita? É aceitável ser um ludita? E, pensando bem, o que é um ludita, afinal?
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Historicamente, os luditas prosperaram na Grã-Bretanha entre 1811 e 1816. Eram grupos de homens organizados, mascarados e anônimos, cujo objetivo era destruir máquinas utilizadas principalmente na indústria têxtil. Eles juraram lealdade não a nenhum rei britânico, mas ao seu próprio Rei Ludd. Não está claro se eles se autodenominavam luditas, embora fossem assim chamados tanto por amigos quanto por inimigos. O uso da palavra por C.P. Snow era claramente polêmico, com o objetivo de sugerir medo e ódio irracionais pela ciência e pela tecnologia. Os luditas, nessa visão, passaram a ser imaginados como os contrarrevolucionários da “Revolução Industrial” que suas versões modernas “nunca tentaram, quiseram ou foram capazes de compreender”.
Mas a Revolução Industrial não foi, como as Revoluções Americana e Francesa do mesmo período, uma luta violenta com início, meio e fim. Foi mais suave, menos conclusiva, mais como uma passagem acelerada em uma longa evolução. A expressão foi popularizada pela primeira vez há cem anos pelo historiador Arnold Toynbee e tem recebido certa atenção revisionista, recentemente na Scientific American de julho de 1984. Aqui, em “Medieval Roots of the Industrial Revolution” [Raízes medievais da Revolução Industrial], Terry S. Reynolds sugere que o papel inicial da máquina a vapor (1765) pode ter sido exagerado. Longe de ser revolucionária, grande parte da maquinaria que o vapor passou a acionar já existia há muito tempo, sendo, na verdade, acionada pela força d’água desde a Idade Média. No entanto, a ideia de uma “revolução” tecnossocial, na qual as mesmas pessoas saíram por cima como na França e nos Estados Unidos, provou ser útil para muitos ao longo dos anos, principalmente para aqueles que, como C.P. Snow, pensaram ter descoberto em “ludita” uma maneira de chamar aqueles com quem discordam de, ao mesmo tempo, reacionários políticos e anticapitalistas.
Mas o Oxford English Dictionary tem um interessante conto para contar. Em 1779, em uma vila em algum lugar de Leicestershire, um tal Ned Lud invadiu uma casa e, “em um acesso de raiva insana”, destruiu duas máquinas usadas para tricotar meias. A notícia se espalhou. Logo, sempre que uma máquina de tricotar meias era encontrada sabotada – isso vinha acontecendo, segundo a Encyclopedia Britannica, desde cerca de 1710 –, as pessoas respondiam com a frase de efeito “Lud deve ter estado aqui”. Quando seu nome foi adotado pelos destruidores de máquinas de 1812, o histórico Ned Lud já havia sido absorvido pelo apelido mais ou menos sarcástico de “Rei (ou Capitão) Ludd” e agora era todo mistério, ressonância e diversão sombria: uma presença mais do que humana, à noite, vagando pelos distritos de meias da Inglaterra, possuído por uma obsessiva piada – toda vez que ele avistava uma máquina de tricotar meias, enlouquecia e passava a destruí-la.
Mas é importante lembrar que o alvo do ataque original de 1779, como muitas máquinas da Revolução Industrial, não era uma tecnologia nova. A máquina de meias existia desde 1589, quando, segundo a tradição popular, foi inventada pelo reverendo William Lee, por pura maldade. Parece que Lee estava apaixonado por uma jovem que estava mais interessada em tricotar do que nele. Ele aparecia na casa dela. “Desculpe, reverendo, estou tricotando.” “O quê, de novo?” Depois de um tempo, incapaz de lidar com esse tipo de rejeição, Lee, não como Ned Lud, em um acesso de raiva insana, mas vamos imaginar de forma lógica e fria, jurou inventar uma máquina que tornasse obsoleto o tricô manual de meias. E ele conseguiu. De acordo com a enciclopédia, a estrutura do clérigo rejeitado “era tão perfeita em sua concepção que continuou a ser o único meio mecânico de tricotar por centenas de anos”.
Agora, considerando esse período de tempo, não é assim fácil imaginar Ned Lud como um louco tecnofóbico. Sem dúvida, o que as pessoas admiravam e mitificavam nele era o vigor e a determinação de seu ataque. Mas as palavras “ataque de raiva insana” são de terceira mão e foram ditas pelo menos 68 anos após o evento. E a raiva de Ned Lud não era dirigida às máquinas, não exatamente. Prefiro pensar nela enquanto controlada, uma raiva filtrada pelas artes marciais, de um barra-pesada aplicado.
Há uma longa história popular sobre essa figura, o Barra-Pesada. Ele geralmente é do sexo masculino e, embora às vezes conquiste a enigmática tolerância , é quase universalmente admirado pelos homens por duas qualidades básicas: a barra é com ele e com ele a barra pesa. Barra não significa necessariamente ser ruim em suas habilidades, mas sim capaz de causar danos em grande escala. O importante aqui é a ampliação da escala, a multiplicação do efeito.
As máquinas de tricotar que provocaram os primeiros distúrbios luditas vinham tirando o emprego das pessoas há mais de dois séculos. Todos viram isso acontecer – tornou-se parte da vida cotidiana. As pessoas também viam as máquinas se tornando cada vez mais propriedade de homens que não trabalhavam, apenas possuíam e contratavam. Não foi preciso nenhum filósofo alemão, na época ou depois, para apontar o que isso causava, e vinha causando, aos salários e empregos. O sentimento público em relação às máquinas nunca poderia ter sido um simples horror irracional, mas provavelmente algo mais complexo: o amor/ódio que cresce entre humanos e máquinas – especialmente quando elas já existem há algum tempo – sem mencionar o grave ressentimento em relação a pelo menos duas multiplicações de efeito que eram vistas como injustas e ameaçadoras. Uma delas era a concentração de capital que cada máquina representava, e a outra era a capacidade de cada máquina de tirar um certo número de humanos do trabalho – de “valer” tantas almas humanas. O que deu ao Rei Ludd seu carisma peculiar de vilão, levando-o de herói local a inimigo público nacional, foi o fato de ele ter enfrentado esses oponentes amplificados, multiplicados, mais do que humanos, e ter vencido. Quando os tempos são difíceis e nos sentimos à mercê de forças muitas vezes mais poderosas, não buscamos algum equalizador, voltando-nos, mesmo que apenas na imaginação, no desejo, para o Homem de Ação – o gênio da lâimpada, o golem, o hulk, o super-herói – que resistirá ao que, de outra forma, nos oprimiria? É claro que a verdadeira luta secular ainda era travada por pessoas comuns, sindicalistas à frente de seu tempo, usando a noite e sua própria solidariedade e disciplina para multiplicar seus efeitos.
Era uma guerra aberta de classes. O movimento tinha seus aliados no Parlamento, entre eles Lord Byron, cujo discurso inaugural na Câmara dos Lordes em 1812 argumentou com compaixão contra um projeto de lei que propunha, entre outras medidas repressivas, tornar a quebra de teares punível com a morte. “Você não está próximo dos luditas?”, escreveu ele de Veneza para Thomas Moore. “Por Deus! Se houver uma briga, eu estarei entre vocês! Como estão os tecelões – os quebradores de máquinas – os luteranos da política – os reformadores?” Ele inclui uma “canção amável”, que se revela um hino ludita tão inflamado que só foi publicado após a morte do poeta. A carta é datada de dezembro de 1816: Byron havia passado o verão anterior na Suíça, confinado por um tempo na Villa Diodati com os Shelleys, observando a chuva cair, enquanto todos contavam histórias de fantasmas uns aos outros. Naquele dezembro, por acaso, Mary Shelley estava trabalhando no capítulo quatro de seu romance Frankenstein, ou o Prometeu Moderno.
Se existisse um gênero literário chamado “romance ludita”, este livro, que alerta sobre o que pode acontecer quando a tecnologia e aqueles que a praticam saem do controle, seria o primeiro e um dos melhores exemplares. A criatura de Victor Frankenstein também se qualifica, sem dúvida, como um grande Barra-Pesada literário. “Resolvi…”, diz Victor, “criar um ser de estatura gigantesca, ou seja, com cerca de dois metros e meio de altura e proporcionalmente grande”, o que resolve a questão do tamanho. A história de como ele se tornou tão barra-pesada é o cerne do romance, protegida em seu íntimo: contada a Victor em primeira pessoa pela própria criatura, depois aninhada dentro da narrativa do próprio Victor, que por sua vez está aninhada nas cartas do explorador ártico Robert Walton. Por mais que grande parte da longevidade de Frankenstein se deva ao gênio subestimado James Whale, que o traduziu para o cinema, ele continua valendo muito a pena ser lido, por todas as razões pelas quais lemos romances, bem como pela questão muito mais limitada de seu valor ludita: ou seja, por sua tentativa, por meios literários noturnos e sob disfarce, de negar a máquina.
Veja, por exemplo, o relato de Victor sobre como ele monta e anima sua criatura. É claro que ele precisa ser um pouco vago nos detalhes, mas ficamos com um procedimento que parece incluir cirurgia, eletricidade (embora nada parecido com as extravagâncias galvânicas de Whale), química e até mesmo, a partir de sugestões obscuras sobre Paracelso e Alberto Magno, a forma de magia então recentemente desacreditada conhecida como alquimia. O que fica claro, porém, apesar de comumente retratada com o Parafuso No Pescoço, é que nem o método nem a criatura resultante são mecânicos.
Essa é uma das várias semelhanças interessantes entre Frankenstein e uma história anterior sobre um Barra-Pesada, O Castelo de Otranto (1765), de Horace Walpole, geralmente considerado o primeiro romance gótico. Por um lado, ambos os autores, ao apresentarem seus livros ao público, usaram vozes que não eram as suas. O prefácio de Mary Shelley foi escrito por seu marido, Percy, que fingia ser ela. Somente 15 anos depois ela escreveu uma introdução para Frankenstein com sua própria voz. Walpole, por outro lado, deu ao seu livro uma história editorial totalmente inventada, alegando que era uma tradução do italiano medieval. Somente no prefácio da segunda edição ele admitiu a autoria.
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Os dois romances também têm uma origem noturna surpreendentemente semelhante: ambos resultaram de episódios de sonhos lúcidos. Mary Shelley, naquele verão de histórias de fantasmas em Genebra, tentando dormir à meia-noite, de repente viu a criatura ganhar vida, as imagens surgindo em sua mente “com uma vivacidade muito além dos limites habituais do devaneio”. Walpole acordou de um sonho “do qual tudo o que eu conseguia lembrar era que me imaginava em um castelo antigo… e que, no corrimão superior de uma grande escadaria, vi uma mão gigantesca com uma armadura”.
No romance de Walpole, essa mão aparece como a mão de Alfonso, o Bom, ex-príncipe de Otranto e, apesar de seu apelido, o Barra-Pesada residente do castelo. Alfonso, como a criatura de Frankenstein, é montado a partir de peças – capacete com plumas de zibelina, pé, perna, espada, todas elas, como a mão, bastante grandes – que caem do céu ou simplesmente se materializam aqui e ali nos terrenos do castelo, implacáveis como o lento retorno do recalcado de Freud. Os agentes ativadores, novamente como os de Frankenstein, não são mecânicos. A montagem final da “forma de Alfonso, dilatada a uma magnitude imensa” é alcançada por meios sobrenaturais: uma maldição de família e a intercessão do santo padroeiro de Otranto.
A mania pela ficção gótica após O Castelo de Otranto baseava-se, suspeito, em anseios profundos e religiosos por aquele tempo mítico anterior que ficou conhecido como a Era dos Milagres. De maneiras mais ou menos literais, as pessoas do século XVIII acreditavam que, em tempos passados, todo tipo de coisa era possível, o que já não era mais o caso. Gigantes, dragões, feitiços. As leis da natureza não eram tão rigorosamente formuladas naquela época. O que antes era magia verdadeira, na Era da Razão, degenerou em mera maquinaria. As fábricas satânicas sombrias de Blake representavam uma magia antiga que, como Satanás, havia caído em desgraça. À medida que a religião se secularizava cada vez mais, dando lugar ao deísmo e à descrença, permanecia a eterna ânsia humana por evidências da existência de Deus e da vida após a morte, pela salvação – ressurreição corporal, se possível. O movimento metodista e o Grande Despertar estadunidense foram apenas dois setores de uma ampla frente de resistência à Era da Razão, uma frente que incluía o radicalismo e a maçonaria, bem como os luditas e o romance gótico. Cada um à sua maneira expressava a mesma profunda relutância em abrir mão de elementos da fé, por mais “irracionais” que fossem, em favor de uma ordem tecnopolítica emergente que poderia ou não saber o que estava fazendo. “Gótico” tornou-se um código para “medieval” e continuou sendo um código para “milagroso”, passando pelos pré-rafaelitas, pelas cartas de tarô da virada do século, pela ópera espacial nas revistas pulp e nos quadrinhos, até chegar a Star Wars e aos contos contemporâneos de espada e feitiçaria.
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Insistir no milagroso é negar à máquina pelo menos algumas de suas reivindicações sobre nós, é afirmar o desejo limitado de que os seres vivos, terrestres e outros, possam ocasionalmente pesar a barra o suficiente para participar de ações transcendentais. Por essa teoria, por exemplo, King Kong (?-1933) se torna um santo ludita clássico. O diálogo final do filme, você se lembra, é: “Bem, os aviões o pegaram.” “Não… foi a Bela que matou a Fera.” Nele, encontramos novamente a mesma disjunção snoviana, apenas diferente, entre o humano e o tecnológico.
Mas se insistirmos em violações fictícias das leis da natureza – do espaço, do tempo, da termodinâmica e da grande questão, a própria mortalidade –, corremos o risco de sermos julgados pela corrente literária dominante como insuficientemente sérios. Levar a sério essas questões é uma forma que os adultos tradicionalmente encontraram para se diferenciar das crianças, que lidam com a vida com uma confiança imortal. Refletindo posteriormente sobre Frankenstein, que escreveu quando tinha 19 anos, Mary Shelley disse: “Tenho carinho por ele, pois foi fruto de dias felizes, quando a morte e o luto eram apenas palavras que não encontravam eco verdadeiro no meu coração”. A atitude gótica em geral, por usar imagens de morte e sobrevivência fantasmagórica com um objetivo não mais responsável do que efeitos especiais e emoções baratas, foi julgada como não suficientemente séria e confinada à sua própria parte da cidade. Não é o único bairro da grande Cidade da Literatura tão, digamos, bem definido. Nos faroestes, as pessoas boas sempre vencem. Nos romances românticos, o amor conquista tudo. Nos romances policiais, sabemos que não é bem assim. Dizemos: “Mas o mundo não é assim.” Esses gêneros, ao insistirem no que é contrário aos fatos, deixam de ser sérios o suficiente e, por isso, são rotulados como “entretenimento escapista”.
Isso é especialmente lamentável no caso da ficção científica, em que a década após Hiroshima testemunhou um dos mais notáveis florescimentos de talento literário e, muitas vezes, do gênio, em nossa história. Foi tão importante quanto o movimento Beat que ocorria na mesma época, certamente mais importante do que a ficção mainstream, que, com poucas exceções, havia sido paralisada pelo clima político da Guerra Fria e dos anos McCarthy. Além de ser uma síntese quase ideal das Duas Culturas, a ficção científica também foi um dos principais refúgios, em nossa época, para aqueles com tendências luditas.
Em 1945, o sistema fabril – que, mais do que qualquer máquina, foi o resultado real e mais importante da Revolução Industrial – havia se expandido para incluir o Projeto Manhattan, o programa alemão de foguetes de longo alcance e os campos de extermínio, como Auschwitz. Não era preciso ser um grande profeta para perceber como essas três curvas de desenvolvimento poderiam convergir de forma plausível, e em pouco tempo. Desde Hiroshima, temos assistido à multiplicação descontrolada das armas nucleares e à aquisição, para fins globais, de sistemas de lançamento com alcance e precisão ilimitados. A aceitação imperturbável de um holocausto com um número de vítimas na casa dos sete e oito dígitos tornou-se – entre aqueles que, particularmente desde 1980, têm orientado nossas políticas militares – senso comum.
Para as pessoas que escreviam ficção científica nos anos 1950, nada disso era grande surpresa, embora a imaginação ludita moderna ainda não tenha criado nenhuma criatura maligna e grande o suficiente, mesmo nas ficções mais irresponsáveis, para se comparar ao que aconteceria em uma guerra nuclear. Assim, na ficção científica da Era Atômica e da Guerra Fria, vemos o impulso ludita de negar a máquina tomando uma direção diferente. A perspectiva do hardware perdeu importância em favor de preocupações mais humanísticas æ evoluções culturais exóticas e cenários sociais, paradoxos e jogos com espaço/tempo, questões filosóficas complexas – a maioria delas compartilhando, como a literatura crítica amplamente discutiu, uma definição de “humano” como particularmente distinto de “máquina”. Como seus antecessores, os luditas do século XX olhavam com saudade para outra era – curiosamente, a mesma Era da Razão que havia levado os primeiros luditas à nostalgia pela Era dos Milagres.
Mas agora vivemos, segundo nos dizem, na Era da Informática. Qual é a perspectiva para a sensibilidade ludita? Os mainframes atrairão a mesma atenção hostil que as máquinas de tricotar atraíam antigamente? Duvido muito. Escritores de todos os tipos estão correndo para comprar processadores de texto. As máquinas já se tornaram tão fáceis de usar que até mesmo os luditas mais conservadores podem ser seduzidos a largar a velha marreta e começar a digitar umas teclas. Além disso, parece haver um consenso crescente de que conhecimento realmente é poder, que existe uma conversão bastante direta entre dinheiro e informação e que, de alguma forma, se a logística puder ser resolvida, milagres ainda podem ser possíveis. Se for assim, os luditas podem finalmente ter chegado a um consenso com seus adversários snovianos, o alegre exército de tecnocratas que supostamente tinham o “futuro em seus ossos”. Pode ser apenas uma nova forma da ambivalência ludita perene em relação às máquinas, ou pode ser que a esperança ludita mais profunda de um milagre agora resida na capacidade do computador de levar os dados certos àqueles a quem eles serão mais úteis. Com a aplicação adequada do orçamento e do tempo de computador, curaremos o câncer, nos salvaremos da extinção nuclear, cultivaremos alimentos para todos, desintoxicaremos os resultados da ganância industrial enlouquecida – realizaremos todos os sonhos impossíveis dos nossos dias.
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A palavra “ludita” continua a ser aplicada com desprezo a qualquer pessoa que tenha dúvidas sobre a tecnologia, especialmente a nuclear. Hoje em dia, os luditas já não se deparam com humanos proprietários de fábricas e máquinas vulneráveis. Tal como profetizou o conhecido presidente e ludita involuntário D. D. Eisenhower quando deixou o cargo, existe agora um establishment de poder permanente composto por almirantes, generais e CEOs, contra os quais nós, pobres coitados comuns, estamos completamente em desvantagem, embora Ike não o tenha dito exatamente dessa forma. Todos nós devemos manter a calma e permitir que isso continue, mesmo que, devido à revolução dos dados, a cada dia seja menos possível enganar qualquer pessoa em qualquer momento. Se nosso mundo sobreviver, o próximo grande desafio a ser observado virá – você ouviu aqui primeiro – quando as curvas de pesquisa e desenvolvimento em inteligência artificial, biologia molecular e robótica convergirem. Caramba. Será incrível e imprevisível, e mesmo a galera do andar de cima, esperemos sinceramente, será pega de surpresa. Certamente é algo que todos os bons luditas devem esperar, se, Deus queira, vivermos tanto tempo. Enquanto isso, como estadunidenses, podemos nos consolar, por mais mínimo e frio que seja, com a canção maliciosamente improvisada de Lord Byron, na qual ele, como outros observadores da época, viu uma clara identificação entre os primeiros luditas e nossas próprias origens revolucionárias. Ela começa assim:Como os caras da Liberdade d’além mar
Conquistaram suas almas com sangue rude
Nós também, se precisar
Morreremos para nossa vontade conquistar
Abaixo todos os reis, exceto o Rei Ludd!

