Mark Fisher, crítico cultural, filósofo e professor, morreu em janeiro de 2017, deixando duas obras importantes por terminar: seu ciclo de palestras “Desejo Pós-Capitalista” e o que seria o livro que carregaria a introdução (por si só inacabada) abaixo, Comunismo Lisérgico.
Desejo Pós-Capitalista foi publicado pela Autonomia Literária (finalmente!) e falei longamente sobre o livro nesse episódio do podcast Viracasacas.
Famoso por Realismo Capitalista, o livro-conceito que cativa cada vez mais leitores com seu desnudamento do processo ideológico do capitalismo tardio, Fisher queria, no fim da sua vida, responder a si mesmo. Seu objetivo era ir além da paralisia provocada pelo “realismo capitalista”, era quebrar os grilhões da “precorporação” (conceito no primeiro capítulo de Realismo Capitalista, que versa sobre a capacidade do capitalismo tardio em incorporar suas críticas, especialmente no campo da estética), respondendo o chamado leninista do “que fazer?” que se acumulava na sua caixa de mensagens.
Punk, pós-punk, quase niilista em seu aceleracionismo nos anos 90, Fisher surpreendeu todo mundo que acompanhava sua obra de perto nessa empreitada final: pecado dos pecados, celebrava a contracultura, parecia até celebrar os hippies! Não é só isso que Fisher oferece neste seu trabalho final, mas não deixa de ser interessante notar que um esteta polemista de alta octanagem, capaz de perder amizades em caixas de comentários de blog, usa “Psychedelic Shack”, faixa excepcionalmente menor da fase psicodélica dos Temptations (imagine, comparar com “Cloud Nine” ou “Papa Was a Rolling Stone”) como exemplo central de sua utopia pós-capitalista.
Por fim, para não alongar, uma nota rápida: a escolha por canonizar na nossa tradução o termo “psicodélico” para definir o “acid” do comunismo proposto por Fisher. Sei que já se traduz de maneira desajeitada “acid” por “ácido” entre os brasileiros que estudam Fisher, seja no mundo do direito, da psicanálise ou da política. Porém, é importante notar que, no vernáculo britânico que Fisher escreveu, ele nunca quis que “acid” tivesse qualquer outra conotação que não fosse a da dietilamida do ácido lisérgico 25 (LSD-25). Cria do Segundo (e Terceiro) Verão do Amor da virada dos 1980 para os 1990, Fisher está mais próximo do “acid house” do que da chuva ácida, e “acid”, nas ruas da ilha da chuvosa Albion, até hoje, soa exatamente da mesma maneira que o “doce” na boca de um clubber brasileiro. Como melhor maneira de marcar que o “ácido” do título se refere aos estados alterados da mente, optamos pelo “lisérgico” que também batiza o LSD (para não cair em opções como “psicodélico” ou então, o que confundiria ainda mais os leitores casuais e enfureceria quem estuda Fisher, com “comunismo doce”). É isso, boa leitura e boa viagem:
Comunismo Lisérgico (uma introdução inacabada) (1)
“O espectro de um mundo que pode ser livre”
[Q]uanto mais perto se encontra a possibilidade real de emancipar o indivíduo das restrições outrora justificadas pela escassez e imaturidade, tanto maior é a necessidade de manutenção e dinamização dessas restrições, para que a ordem estabelecida de dominação não se dissolva. A civilização tem de se defender contra o espectro de um mundo que pode ser livre.
[…]Em troca dos artigos que enriquecem a vida deles, os indivíduos vendem não só seu trabalho, mas também seu tempo livre.[…] As pessoas residem em concentrações habitacionais – e possuem automóveis particulares, com os quais já não podem escapar para um mundo diferente. Têm gigantescas geladeiras repletas de alimentos congelados. Têm dúzias de jornais e revistas que refletem os mesmos ideais. Dispõem de inúmeras opções e inúmeros inventos que são todos da mesma espécie, que as mantêm ocupadas e distraem sua atenção do verdadeiro problema – que é a consciência de que poderiam trabalhar menos e determinar suas próprias necessidades e satisfações.
— Herbert Marcuse, Eros e Civilização (2)
O argumento deste livro é de que os últimos quarenta anos se concentraram na tarefa de exorcizar “o espectro de um mundo que pode ser livre”. Adotar a perspectiva de tal mundo nos permite reverter a ênfase em muito do que tem sido a luta da esquerda. No lugar de procurar superar o Capital, deveríamos focar no que o Capital deve sempre obstruir: a capacidade coletiva de produzir, cuidar e gozar. Nós na esquerda estivemos errados por um tempo: não é que sejamos anti-capitalistas, é que o capitalismo, com seus policiais de viseiras, seu gás lacrimogêneo, e todas as minúcias teológicas da sua economia, está posicionado para bloquear a emergência dessa Plenitude Vermelha. A superação do Capital tem que estar fundamentalmente baseada na simples compreensão de que, longe de versar sobre a “criação de riqueza”, o Capital necessariamente e sempre vai bloquear a produção da riqueza em comum.
O principal (mas de nenhuma maneira único) agente envolvido no exorcismo do espectro de um mundo que pode ser livre é o projeto que tem sido chamado de neoliberalismo. Mas o alvo real do neoliberalismo não eram seus inimigos oficiais – o monólito decadente do bloco soviético e os compactos esfarelentos da democracia e do New Deal, que estavam entrando em colapso pelo peso de suas próprias contradições.
Ao contrário, o neoliberalismo é melhor entendido como um projeto voltado à destruição – ao ponto de fazê-los impensáveis – dos experimentos em socialismo democrático e comunismo libertário que estava florescendo no final dos anos 1960 e no começo dos 1970.
A consequência-mor da eliminação dessas possibilidades foi a condição que chamei de realismo capitalista – o reconhecimento fatalista de que não há alternativa ao capitalismo. Se houve um evento fundador do realismo capitalista, seria a violenta destruição do governo Allende no Chile pelo golpe, apoiado pelos americanos, do General Pinochet. Allende estava experimentando com uma forma de socialismo democrático que oferecia uma alternativa real tanto ao capitalismo quanto ao stalinismo. A destruição militar do regime Allende, e o subsequente encarceramento e tortura em massa, são apenas o mais violento e dramático exemplo das distâncias que o capital teria que percorrer para fazer-se aparentemente o único modo “realista” de organizar uma sociedade. Não é apenas que uma nova forma de socialismo foi exterminada no Chile; o país também se transformou num laboratório onde as medidas que seriam aplicadas em outros centros do neoliberalismo (desregulamentação financeira, a abertura da economia para o capital estrangeiro, privatizações) foram testadas. Em países como os EUA e o Reino Unido, a implementação do capitalismo realista foi uma ação a conta-gotas, envolvendo induções e seduções, assim como repressão. O efeito final foi o mesmo – a extirpação da própria ideia de um socialismo democrático ou um comunismo libertário.
O exorcismo do “espectro de um mundo que pode ser livre” era uma questão tão cultural quanto estreitamente política. Porque esse espectro, e mesmo a possibilidade de um mundo para além da labuta, foi gestado com mais potência no campo da cultura – mesmo, ou talvez especialmente, na cultura que não necessariamente pensava-se orientada para a política.
Marcuse explica porque isso acontece, e a influência cada vez menor do seu trabalho nos anos recentes conta sua própria história. O Homem Unidimensional, um livro que enfatiza o lado sombrio do seu trabalho, segue como uma referência, mas Eros e Civilização, como muitos outros trabalhos, está há muito fora de catálogo. Sua crítica da administração total da vida e da subjetividade pelo capitalismo continua a ressoar, enquanto a afirmação de Marcuse de que a arte constituiria uma “Grande Recusa, o protesto contra o que há” (3) parece hoje de um romantismo demodê, ingenuamente irrelevante na era do realismo capitalista. Ainda assim Marcuse previu esse tipo de crítica, e a crítica presente em O Homem Unidimensional tem certa tração porque vem de um segundo espaço, uma “dimensão estética” radicalmente incompatível com a vida cotidiana sob o capitalismo. Marcuse argumentou que, na verdade, as “imagens tradicionais de alienação artística” associadas ao Romantismo não pertencem ao passado. Na verdade, ele disse, em… formulação, elas “recordam e preservam a memória que pertence ao futuro: imagens de uma gratificação que destruiria a sociedade que tentasse suprimi-las” (4). A Grande Recusa rejeitava não apenas o realismo capitalista, mas o “realismo” em si. Existe, ele escreveu, um “conflito inerente entre a arte e o realismo político” (5). A arte era uma alienação positiva, uma “negação racional” da ordem existente das coisas. Seu predecessor na Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, localizou um valor semelhante na alteridade intrínseca da arte experimental. No trabalho de Adorno, ainda assim, somos convidados a examinar interminavelmente as feridas de uma vida deteriorada sob o capital, a ideia de um mundo para além do capital é despachada para um além utópico. A arte apenas marca a nossa distância dessa utopia. Em contraste, Marcuse evoca vividamente, como uma possibilidade imediata, um mundo totalmente transformado. Sem dúvida essa característica do seu trabalho fez com que Marcuse fosse adotado tão entusiasticamente por elementos da contracultura dos anos 1960. Ele antecipou o desafio que a contracultura impôs a um mundo dominado pelo trabalho sem sentido. As figuras mais significativas politicamente na literatura, ele afirmou em O Homem Unidimensional, eram “aquelas que não ganhavam seu sustento, ao menos não de uma maneira normal e ordinária”. (6) Tais personagens, e as formas de vida com as quais eles eram associados, tomariam a dianteira na contracultura.
Na verdade, por mais que o trabalho de Marcuse estivesse em sintonia com a contracultura, a sua análise também previa sua derrota final e sua incorporação. Um grande tema em O Homem Unidimensional é a neutralização do desafio estético. Marcuse se preocupava com a popularização da vanguarda artística, não por ansiedades elitistas de que a democratização da cultura corromperia a pureza da arte, mas porque a absorção da arte nos espaços administrados do comércio capitalista encobriria a sua incompatibilidade com a cultura capitalista. Ele já havia testemunhado a cultura capitalista converter o gângster, o beatnik e a vamp de “imagens de outra forma de viver” em “anomalias ou tipos da mesma vida de sempre” (7). O mesmo ia acontecer com a contracultura, na qual muitos, pungentemente, preferiam se referir a si mesmos como “anomalias” (freaks).
De qualquer maneira, Marcuse nos permite enxergar por que os anos 1960 continuam a importunar nosso momento presente. Nos últimos anos, a década de 1960 se tornaram ao mesmo tempo um passado profundo tão exótico e distante que não conseguimos imaginar como era viver neles, e um momento mais vívido que o agora – um tempo quando as pessoas realmente viviam, quando as coisas realmente aconteciam. Ainda assim a década nos assombra não por causa de uma confluência de fatores irrecuperáveis e irrepetíveis, mas porque os potenciais que ela materializou e começou a democratizar – a perspectiva de uma vida livre das amarras do trabalho – seguem sendo suprimidos. Para explicar porque nós não nos movemos para um mundo além do trabalho nós temos que olhar para um vasto projeto social, político e cultural cujo objetivo tem sido a produção de escassez. Capitalismo: um sistema que gera escassez artificial para poder produzir escassez real; um sistema que produz escassez real para gerar escassez artificial. Escassez real – a escassez de recursos naturais – agora assombra o capital, como o Real que sua fantasia de expansão infinita precisa trabalhar fazendo hora extra para reprimir. A escassez artificial – que é fundamentalmente a escassez de tempo – é necessária, como diz Marcuse, para poder nos distrair da imanente possibilidade de liberdade. (A vitória do neoliberalismo, é claro, dependeu da cooptação do conceito de liberdade. A liberdade neoliberal, evidentemente, não é a liberdade de ter que trabalhar, mas a liberdade através do trabalho.)
Assim como Marcuse previu, a disponibilidade de mais bens e dispositivos de consumo no Norte global obscureceu a maneira em que esses mesmos bens têm cada vez mais funcionado para produzir uma escassez de tempo. Mas talvez nem mesmo Marcuse poderia antecipar a capacidade do capital no século 21 para gerar sobretrabalho e administrar o tempo fora do trabalho remunerado. Talvez apenas um cáustico futurologista como Philip K. Dick teria previsto a ubiquidade banal da comunicação corporativa de hoje, com a sua penetração em praticamente todas as áreas da consciência e da vida cotidiana.
“O passado é tão mais seguro”, observa um dos narradores da sátira distópica de Margaret Atwood, The Heart Goes Last, “porque o que quer que esteja nele já aconteceu. Não pode ser mudado: então, de certa maneira, não há nada a temer” (8). Apesar do que pensa o narrador de Atwood, o passado não “já aconteceu”. O passado precisa ser continuamente re-narrado, e o objetivo político de narrativas reacionárias é suprimir os potenciais que ainda aguardam, prontos para serem re-despertos, em momentos antigos. A contracultura dos anos 1960 é agora inseparável de sua própria simulação, e a redução da década a imagens “icônicas”, música “clássica” e reminiscências nostálgicas neutralizou as verdadeiras promessas que explodiram na época. Os aspectos da contracultura que poderiam ser apropriados foram ressignificados como precursores do “novo espírito do capitalismo”, enquanto aqueles que eram incompatíveis com um mundo de sobretrabalho foram condenados a serem vistos como rabiscos ociosos, que na lógica contraditória da reação, são simultaneamente perigosos e impotentes.
A subjugação da contracultura parece ter confirmado a validade do ceticismo e hostilidade contra o tipo de posição que Marcuse propunha. Se “a contracultura levou ao neoliberalismo”, é melhor que a contracultura não acontecesse. Na verdade, o argumento oposto é mais convincente – que o fracasso da esquerda após os anos 1960 teve muito a ver com o seu repúdio, ou sua recusa em dialogar com os sonhos que a contracultura liberou. Não havia nenhuma inevitabilidade em relação à captura e aprisionamento pela nova direita dessas novas correntes para seu projeto de individualização e sobretrabalho obrigatórios.
E se a contracultura foi apenas um início cambaleante, no lugar da coisa mais importante que poderíamos esperar? E se o sucesso do neoliberalismo não fosse uma indicação da inevitabilidade do capitalismo, mas um testamento à escala da ameaça prometida pelo espectro de uma sociedade que pode ser livre?
É no espírito dessas questões que esse livro procura voltar às décadas de 1960 e 1970. O surgimento do realismo capitalista não teria acontecido sem as narrativas que as forças reacionárias contaram sobre essas décadas. Retornar àqueles momentos nos permitirá continuar com o processo de desembaraçar as narrativas que o neoliberalismo teceu em torno delas. E, mais importante, nos permitirá a construção de novas narrativas.
De várias maneiras, repensar os anos 1970 é mais importante que revisitar os 1960. Os anos 1970 foram a década em que o neoliberalismo começou um avanço que seria narrado retrospectivamente como irresistível. Ainda assim, trabalhos recentes sobre os anos 1970 – incluindo Stayin’ Alive: The Last Days of the Working Class (Sobrevivendo: Os Últimos Anos da Classe Trabalhadora) de Jefferson Cowie, When The Lights Went Out (Quando as Luzes Se Apagaram) de Andy Beckett e That Option No Longer Exists (Essa Opção Não Existe Mais) de John Medhurst – têm enfatizado que a década não significou apenas a drenagem das possibilidades que explodiram nos 1960. Os 1970 foram um período de luta e transição, onde o sentido e o legado da década anterior era um dos campos de batalha mais cruciais. Algumas das tendências emancipatórias que emergiram durante os anos 1960 intensificaram e proliferaram durante os anos 1970. “Para muitos britânicos politizados”, escreve Andy Beckett, “a década não foi uma ressaca dos 1960; foi na verdade o ponto onde a grande festa dos 1960 realmente começou” (9).
A bem-sucedida Greve dos Mineiros de 1972 viu uma aliança entre os mineiros grevistas e os estudantes que ecoou convergências similares à de Paris de 1968, com os mineiros usando o campus de Colchester da Universidade de Essex como a base dele na Ânglia Oriental.
Indo bem além da simples história de que “os anos 1960 levaram ao neoliberalismo”, essas novas leituras dos 1970 nos permitem apreender a inteligência brilhante, a energia feroz e a imaginação para o improviso da contrarrevolução neoliberal. A instalação do realismo capitalista de maneira alguma foi uma simples restauração de um antigo estado das coisas: o individualismo obrigatório imposto pelo neoliberalismo era uma nova forma de individualismo, um individualismo definido contra as diferentes formas de coletividade que floresceram nos 1960. Esse novo individualismo foi criado para ao mesmo tempo superar e nos fazer esquecer dessas formas coletivas. Por isso, rememorar essas múltiplas formas de coletividade é menos um ato de lembrança do que de inesquecimento, um contra-exorcismo do espectro de um mundo que pode ser livre.
Comunismo Lisérgico é o nome que eu dei a esse espectro. O conceito de comunismo lisérgico é uma provocação e uma promessa. Ele aponta para algo que, em algum momento, pareceu inevitável, mas que agora parece impossível: a convergência entre a consciência de classe, a conscientização socialista-feminista e a consciência psicodélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista, uma estetização sem precedentes da vida cotidiana.
A expressão “comunismo lisérgico” se refere ao mesmo tempo a acontecimentos históricos reais e a uma confluência virtual que ainda não aconteceu no mundo real. Formações sociais reais são formadas por formações potenciais cuja realização elas procuram impedir. As digitais de “um mundo que poderia ser livre” podem ser detectadas nas próprias estruturas de um mundo de realismo capitalista que faz da liberdade impossível.
A finada crítica cultural Ellen Willis disse que as transformações imaginadas pela contracultura necessitariam de “uma revolução social e psíquica de uma magnitude quase inconcebível” (10). É muito difícil, nos nossos tempos mais esvaziados, recriar a confiança da contracultura de que tal “revolução social e psíquica” poderia não apenas acontecer, mas que já estava no processo de se desdobrar. Mas nós precisamos agora retornar a um tempo em que a perspectiva da liberação universal parecia iminente.
O fim das deprimentes manhãs de segunda-feira
Vamos começar com um momento que é mais evocativo por causa da sua aparente modéstia:
Era julho de 1966 e eu tinha acabado de fazer nove anos. Estávamos passando as férias nos Broads e a minha família havia recentemente tomado posse de um cruzador de madeira que seria a nossa casa flutuante pela próxima quinzena. Ele se chamava The Constellation e, enquanto meu irmão e eu incansavelmente explorávamos as beliches e as escotilhas encortinadas da nossa cabine construída na proa do barco, a perspectiva do que do que estaria por vir era como uma força vital irradiando de nós como os raios de um sol de cartum. […] Eu […] subi o barco e me posicionei em uma pequena área da popa. No caminho, eu peguei o pequeno rádio transistor branco e rosa da Sanyo da minha irmã Sharon e liguei ele. Eu olhei para o céu azul e limpo do meio da tarde. “River Deep, Mountain High” de Ike e Tina Turner estava tocando e uma espécie de transe arrebatador caiu sobre mim. Do ilimitado céu azul olhei para baixo para a esteira agitada, cheia de pequenos cristais, que nosso barco criava enquanto nós seguíamos em frente, e nesse momento, “River Deep”deu lugar à minha música favorita do período: “Bus Stop”, dos Hollies. Enquanto o floreio de falsa guitarra flamenca que marca o começo da canção surgia por sobre o profundo murmúrio do motor do Constellation, eu olhei para as águas agitadas e disse em voz alta, mas para mim mesmo, “isso está acontecendo agora. ISSO está acontecendo agora.” (11)
Esse relato vem do livro Going To Sea in a Sieve (“Indo ao Mar num Coador”, em tradução livre), com as memórias do escritor e comunicador Danny Baker. Não é preciso dizer que isso não era nada mais que uma Polaroid, uma imagem saturada pelo sol de um período que contêm mais do que o suficiente de tristeza e horror. Os 1960 não foram uma utopia acabada, da mesma forma que as oportunidades que estavam à frente para Barker não estariam disponíveis para a maior parte das pessoas da classe trabalhadora. De maneira semelhante, seria fácil considerar os devaneios de Baker certa nostalgia pela infância perdida, o tipo de memórias douradas que praticamente qualquer um, em qualquer período histórico ou origem social pudesse guardar.
Ainda assim, há algo muito específico sobre esse momento, algo que significa que poderia ter acontecido apenas ali. Podemos enumerar alguns dos fatores que o fazem único: um senso de segurança social e existencial que permitia a famílias da classe trabalhadora a tirar férias; o papel da nova tecnologia como os rádios de transistor teve em, ao mesmo tempo, conectar grupos com o mundo exterior e os permitir a regalarem-se com o momento, um momento que era em si, de certa forma, exorbitantemente suficiente; a maneira que novas músicas – músicas que não eram possíveis de serem imaginadas alguns meses antes, quem dirá anos – poderiam cristalizar e amplificar essa cena como um todo, impregnando a cena com um senso de otimismo casual mas não complacente, o senso de que o mundo estava melhorando.
Esse sentimento de suficiência exorbitante pode ser ouvido em “Sunny Afternoon” dos Kinks, que Baker bem que poderia ter ouvido no mesmo rádio a transistor naquele dia, ou em “I’m Only Sleeping” dos Beatles, que viria um mês depois, ou em lançamentos posteriores, como “Lazy Sunday” dos Small Faces. Essas faixas apreenderam a onírica ansiedade da lida cotidiana de uma perspectiva onde flutuavam ao seu lado, acima ou abaixo dela: fosse uma rua movimentada vista de uma janela de um prédio por um dorminhoco, cuja cama se torna um barco a remo em marcha lenta; a neblina e geada de uma manhã de segunda abjurada, de uma ensolarada tarde de domingo que não precisa terminar; as urgências imediatas dos negócios desdenhadas a partir de um pufe aristocrático agora ocupado por sonhadores da classe trabalhadora que nunca mais vão bater ponto.
“I’m Only Sleeping” (“ficar na cama, flutuar correnteza acima”) era a gêmea da faixa mais conscientemente psicodélica de Revolver, “Tomorrow Never Knows” (“desligue sua mente, relaxe e flutue correnteza abaixo”). Se a letra de “Tomorrow Never Knows”, minimamente adaptada do livro A Experiência Psicodélica – Um Manual Baseado no Livro Tibetano dos Mortos, parece meio ingênua, a música, o design do som, mantém o poder de transportar o ouvinte. “Não era como nada que já houvéssemos ouvido”, relembra John Foxx sobre “Tomorrow Never Knows”,
mas ao mesmo tempo parecia algo instantaneamente reconhecível. Certamente a letra era um pouco suspeita, mas a música, o som – eletricidade orgânica, transmissões desintegradas, um missa católica / budista de um universo paralelo, o que deveria ser a sensação de estar chapado – sem peso, sem tempo, revelação, se mover por novas paisagens luminosas em uma velocidade serena. A música comunicava, inovava, infiltrava, fascinava, elevava – era um mapa para o futuro. (12)
Essas “luminosas paisagens novas” eram mundos para além do trabalho, onde a tediosa repetição da labuta diária dá lugar a explorações à deriva de terrenos estranhos. Ouvindo hoje, essas faixas descrevem as exatas condições necessárias à sua própria produção, ou seja, acessar um certo modo de tempo, um tempo que permite uma profunda absorção.
A recusa ao trabalho também era uma recusa a internalizar sistemas de valoramento que afirmavam que a existência de cada um seria validada pelo trabalho remunerado. Era, digamos, uma recusa a se submeter à perspectiva burguesa que media a vida em termos de sucesso nos negócios. “Eu não vim de um cenário onde as pessoas tinham ‘carreiras’”, escreve Danny Baker. “Você ia trabalhar, você tinha diferentes trabalhos em momentos diferentes, mas era tudo uma bagunça. Isso não definia quem você era ou marcava um caminho na sua vida – e graças a Deus por isso”. Baker terminou os estudos em South East London sem nenhuma qualificação. No entanto, ele tem o cuidado de afirmar que sua jornada picaresca de assistente de loja de discos, produtor de fanzines, jornalista de música e apresentador de televisão e rádio não seja vista como pura sorte nem uma história de trabalho árduo. Ele não conta sua vida como uma narrativa pequeno-burguesa de “melhoramento”, mas de imprudência premiada. Essa “imprudência” vinha de uma sensação de que não se esperava uma satisfação que viesse do trabalho, e de uma imensa confiança, que permitia a ele consistentemente rejeitar os imperativos e ansiedades burguesas. Os dois volumes das memórias de Baker desnudam claramente os fatores que permitiram que sua confiança crescesse: a relativa estabilidade do trabalho do seu pai, num promissor porto que parecia que estaria no coração da economia britânica para sempre; a incorporação da família em uma rede da classe trabalhadora que complementava os salários com “biscates”; a aquisição de um apartamento do governo novo em folha com direito a um jardim. O seu próprio movimento em direção à escrita e à comunicação foi facilitado não por um desejo de empreender, mas por uma emergente esfera pública – constituída por televisão, rádio e impressos – em que perspectivas da classe trabalhadora eram validadas e valorizadas. Mas essa não era uma classe trabalhadora que deveria ser entendida a partir dos protocolos do realismo socialista ou do kitchen-sink britânico, assim como não era limitada pelas caricaturas da classe dominante. Era uma classe trabalhadora que não mais sabia o seu lugar, que havia se elevado acima de si. Mesmo os antigos redutos da burguesia não estavam mais seguros. Nos anos 1960, Ted Hughes se tornou um dos principais poetas da Grã-Bretanha, Harold Pinter, um dos seus mais emocionantes dramaturgos, ambos produzindo um trabalho que refletia a experiência da classe trabalhadora de maneiras desafiadoras e difíceis, e levando-o – pela televisão – às salas de estar de um público em massa.
De qualquer forma, estamos muito longe do desaparecimento da classe que mais tarde seria anunciado pelos ideólogos neoliberais. Os acordos aos quais o trabalho e o capital chegaram em sociedades como os EUA e o Reino Unido aceitaram que a classe era uma característica permanente da organização social. Eles assumiram que havia interesses de classe diferentes que precisavam ser reconciliados e que qualquer governo eficaz, para não mencionar apenas a sociedade, teria que envolver a classe trabalhadora organizada. Os sindicatos eram fortes, encorajados pelo baixo desemprego a ter demandas ousadas. As expectativas da classe trabalhadora eram altas – ganhos haviam ocorrido, mas certamente havia mais a caminho. Era fácil imaginar que as tréguas incômodas entre capital e trabalho terminariam, não com um ressurgimento da direita, mas com um abraço a políticas mais socialistas, se não com o “comunismo pleno” que Nikita Krushchev pensava que estaria em vigor nos anos 1980. Afinal – ou ao que parecia – a direita estava na defensiva, desacreditada e talvez fatalmente maculada nos EUA por causa do prolongado e horrível fracasso da Guerra do Vietnã. O “establishment” não mais inferia deferência automática; em vez disso, parecia exausto, fora de contato, obsoleto, aguardando ser carregado pela enxurrada de qualquer uma ou todas as novas ondas culturais e políticas que estavam corroendo todas as certezas antigas.
Onde a nova cultura não estava sendo dirigida por pessoas da classe trabalhadora, parecia que estava sendo liderada por renegados de classe como o Pink Floyd, jovens de famílias burguesas que haviam rejeitado seus próprios destinos de classe e identificado caminhos para baixo ou para fora desse construto. Eles queriam fazer qualquer coisa, exceto entrar para o mundo dos negócios e dos bancos: campos cuja subsequente libidinização teria confundido as mentes expandidas dos anos sessenta. A aspiração da classe trabalhadora não equivalia à mobilidade de classe, onde a recompensa duvidosa era a aceitação gradual e relutante pelos “superiores”. Em vez disso, a nova boemia parecia apontar para a eliminação da burguesia e de seus valores. De fato, a convicção de que isso era iminente era uma das poucas áreas de sobreposição entre a contracultura e a esquerda revolucionária tradicional, que parecia em muitos outros aspectos estar em desacordo. Ellen Willis certamente sentiu que as formas dominantes da política de esquerda eram incompatíveis com os desejos e ambições desencadeados e traduzidos pela música. Enquanto a música que ela ouvia falava de liberdade, o socialismo parecia tratar a respeito de centralização e controle estatal. A política da contracultura pode ter se oposto ao capitalismo, pensava Willis, mas isso não implicava uma rejeição direta de tudo o que era produzido pelo campo capitalista. Sua “polêmica contra as correntes noções esquerdistas sobre capitalismo avançado” rejeitava, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente as ideias “de que a economia de consumo nos torna escravos das mercadorias, de que a função da mídia de massa é manipular nossas fantasias, para que equiparemos realização pessoal à compra de mercadorias do sistema” (13). A cultura de massa – e a cultura da música em particular – era um terreno de luta e não um domínio do capital. A relação entre formas estéticas e política era instável e incipiente – as formas estéticas não apenas “expressavam” alguma realidade capitalista já existente, elas antecipavam e produziam novas possibilidades. A comodificação não era o ponto em que essa tensão seria sempre e inevitavelmente resolvida em favor do capital; em vez disso, as próprias mercadorias poderiam ser os meios pelos quais as correntes rebeldes poderiam se propagar:
os meios de comunicação de massa ajudaram a espalhar a rebelião, e o sistema comercializou produtos que a encorajavam, pela simples razão de que havia dinheiro a ser ganho com os rebeldes que também eram consumidores. Em certo nível, a revolta dos anos sessenta ilustrou de maneira impressionante a observação de Lenin de que o capitalista vai vender a corda com a qual será enforcado. (14)
No Reino Unido, Stuart Hall captou frustrações semelhantes em grande parte da esquerda existente – frustrações que eram ainda mais intensas no seu caso, porque ele se considerava socialista. Mas o socialismo que Hall queria – um socialismo que pudesse participar dos anseios e sonhos que ouvia na música de Miles Davis – ainda estava para ser criado, e sua chegada foi obstruída tanto por figuras da esquerda quanto da direita.
A primeira figura obstrutiva da esquerda foi o comissário complacente do trabalho organizado ou da social-democracia da Guerra Fria: retrógrado, burocrático, renunciou à “inevitabilidade” do capitalismo, mais interessado em preservar a renda e o status dos homens brancos do que em expandir a luta para incluir … esse personagem é definido pelas suas concessões ao capital e eventual falha.
A outra figura – o que eu quero chamar de Severo Superego Leninista – é definida por sua recusa absoluta em negociar e ceder. Segundo Freud, o superego é caracterizado pela natureza quantitativa e qualitativamente excessiva de suas demandas: o que fazemos em seu nome nunca é suficiente. O Severo Superego Leninista exige uma ascese militante. O militante se dedicará obstinadamente ao evento revolucionário e permanecerá firmemente comprometido com os meios necessários para realizá-lo. O Severo Superego Leninista é tão indiferente ao sofrimento quanto é hostil ao prazer. A resposta fóbica de Lenin à música é instrutiva aqui: “Não consigo ouvir música com muita frequência. Isso afeta seus nervos, faz você querer dizer coisas belas e estúpidas e acariciar as cabeças de pessoas que conseguem criar tanta beleza enquanto vivem neste inferno vil”.
Enquanto os líderes complacentes do trabalhismo organizado foram investidos de status quo, o Severo Superego Leninista aposta tudo em um mundo absolutamente diferente deste em que vivemos. Era esse mundo pós-revolucionário que redimiria os leninistas, e foi a perspectiva deste mundo que eles usaram para julgar a si mesmos. Até lá, é legítimo e de fato necessário cultivar uma indiferença em relação ao sofrimento do nosso mundo: podemos e devemos passar por cima dos sem-teto, porque praticar a caridade apenas atrasa a chegada da revolução.
Mas essa revolução tinha pouco em comum com a “revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível” que Ellen Willis pensou ter sido semeada nos sonhos da contracultura. A revolução que ela concebeu seria ao mesmo tempo mais imediata – preocupada fundamentalmente em como os serviços de cuidado e os arranjos domésticos seriam organizados – e de maior alcance: o mundo depois de transformado seria inimaginavelmente mais estranho do que qualquer coisa que o marxismo-leninismo tivesse projetado. A contracultura achava que já estava produzindo espaços onde essa revolução poderia ser vivida imediatamente.
Para ter uma noção de como eram esses espaços, não podemos fazer melhor do que ouvir “Psychedelic Shack”, do Temptations, lançada em dezembro de 1969. O grupo desempenha o papel de esbaforidos ingênuos que acabaram de voltar de algum tipo de País das Maravilhas: “Estrobos piscam até depois do pôr do sol … Não existe tempo … Incenso no ar …”
Por toda a familiaridade desses significantes, ouvir “Psychedelic Shack” agora pode realmente nos paralisar. Convidados a pensar sobre o psicodélico, nossas primeiras associações podem nos apontar uma fuga solipsística (a letra de uma faixa como “Tomorrow Never Knows” convida exatamente a essa associação). No entanto, “Psychdelic Shack” descreve um espaço que é definitivamente muito coletivizado, que se agita com a energia de um bazar oriental. Apesar de todas as suas fugas carnavalescas da realidade cotidiana, isso não é uma utopia remota. Parece um espaço social real, que você pode imaginar existindo no mundo real. É provável que você encontre um maluco ou um mascate reimaginado como poeta ou músico aqui, e quem sabe se o maluco de hoje pode se tornar o gênio de amanhã?
É também um espaço igualitário e democrático, e um certo efeito paira sobre tudo. Há alguma multiplicidade, mas poucos sinais de ressentimento ou maldade. É um espaço para companheirismo, para conhecer e conversar tanto quanto ter a mente expandida. Se “não existe tempo” – porque a iluminação suspende a distinção entre dia e noite; porque as drogas afetam a percepção do tempo – então você não é vítima das urgências que transformam tanto da vida cotidiana do trabalho em quase um castigo. Não há limite de quanto tempo as conversas podem durar e não é possível dizer para onde os encontros podem levar. Você é livre para deixar sua identidade social para trás, pode se transformar de acordo com seus desejos, de acordo com desejos que você não sabia que tinha.
A característica definidora essencial do psicodélico é a questão da consciência e sua relação com o que é experimentado como realidade. Se os próprios fundamentos de nossa experiência, como nosso senso de espaço e tempo, podem ser alterados, isso não significa que as categorias pelas quais vivemos são plásticas, mutáveis? Entendido em termos individuais, isso rapidamente leva ao relativismo fácil e a um voluntarismo ingênuo que os próprios Temptations tinham como alvo em seu primeiro single de soul psicodélico, “Cloud Nine”. Claro, você pode ser o que quiser, mas isso só pode acontecer quando você está a um milhão de quilômetros da realidade, só quando deixa para trás todas as suas responsabilidades. Esse apelo superegoico poderia ter sido endossado por conservadores, bem como por um certo tipo de radical: conservadores, que queriam que todos se curvassem ao mundo trabalho; militantes, que exigiram compromisso com a revolução, o que – eles diriam – exigiria prestar atenção nos horrores do mundo, não uma fuga rápida do real.
No entanto, a alegação de que estados alterados de consciência podem levar alguém a “milhões de quilômetros da realidade” era falaciosa. Ela exclui a ideia de que o estado alterado de consciência poderia oferecer uma percepção dos sistemas de poder, exploração e ritual que era mais, não menos, lúcida do que a consciência comum. Nos anos 1960, quando a consciência estava cada vez mais assolada pelas fantasias e imagens da propaganda e do espetáculo capitalista, quão sólida era a “realidade” da qual os estados psicodélicos fugiam? O estado de consciência suscetível ao espetáculo não era mais próximo do sonambulismo do que dum estado de alerta e atenção?
Em retrospecto, uma das características mais marcantes da cultura psicodélica da década de 1960 foi a maneira como ela incorporou essas questões metafísicas. O psicodélico não era algo novo – muitas sociedades pré-capitalistas haviam incorporado visões psicodélicas e o uso de alucinógenos em sua prática ritual. A novidade foi a expansão do psicodélico para além de determinados espaços e tempos ritualizados, e do controle de determinados praticantes, como xamãs e feiticeiros. Experimentos com a consciência estavam agora, a princípio, abertos a qualquer pessoa. Apesar de todo o misticismo e pseudo-espiritualismo que sempre pairou sobre a cultura psicodélica, havia realmente uma dimensão desmistificatória e materialista nisso. Experimentos generalizados com a consciência prometiam nada menos do que uma democratização da própria neurologia – uma consciência, recentemente difundida, do papel desempenhado pelo cérebro em produzir o que é experimentado como realidade. Aqueles viajando de ácido estavam externalizando o funcionamento de seu próprio cérebro e potencialmente aprendendo a usar seu cérebro de maneira diferente.
No entanto, as experiências psicodélicas não se limitaram àqueles que usaram drogas. Os próprios meios de comunicação de massa que incorporaram conceitos psicodélicos, juntamente com a Guerra do Vietnã, foram em si um experimento maciço de alteração de consciência. Com a televisão, o colapso da distinção entre os sonhos e a vida desperta que começara com o cinema agora entrava no espaço doméstico “privado”. A televisão estava no centro de uma paisagem de mídia que ainda estava apenas se firmando, e ninguém entendeu porque nada como isso não existia antes. Os Beatles lançaram seu primeiro álbum apenas alguns meses antes do assassinato de John F. Kennedy. A televisão era um canal de contágio (Beatlemania!), trauma e histeria, tanto quanto de mensagens paternalistas ou comerciais de produtos. Ninguém havia sido tão famoso em sua vida quanto os Beatles, porque a infraestrutura para tal fama estava sendo criada, e os próprios Beatles estavam participando dessa construção, como se – a um só tempo – o mundo houvesse se tornado uma extensão de seu próprio sonho eletrônico, e eles se tornaram personagens no sonho de todos os outros.
É possível dizer que a virada psicodélica dos Beatles foi uma tentativa de converter tudo isso em um sonho lúcido. É o que acontece em “A Day In The Life”, do Sgt. Pepper’s, que brinca com a diferença entre a calma do sonho lúcido de Lennon e as urgências da vida do trabalho (o passageiro sem fôlego de McCartney, que chega ao ônibus em poucos segundos de corrida). No entanto, escapar das urgências é sempre dolorosamente imediato – uma vez no ônibus, o personagem de McCartney instantaneamente cai em um sonho.
Lennon parece desapaixonado, mas não desapegado; há humor, mas não há familiaridade. Seu vocal parece inferir que a sonambulização comum do mundo cotidiano só pode ser adequadamente apreendida da perspectiva proporcionada por um tipo diferente de transe. Ou é, antes, que uma voz desconectada dos imperativos da vida ativa / acordada soa catatônica? As faixas nos mostram o interior visto de fora, enquanto Lennon nos leva a percorrer as diferentes maneiras pelas quais a consciência é eletronicamente mediada (por jornais, cinema, televisão): “Eu li as notícias de hoje, ah, cara”.
Esse contraste entre urgência e lucidez aparece com força na adaptação televisiva de Jonathan Miller para Alice no País das Maravilhas. O filme foi transmitido pela rede de TV da BBC em dezembro de 1966 e refletia a influência dos Beatles, assim como iria por sua vez influenciar os Beatles. Filmado em preto e branco, o longa tem um estilo visual estranhamente sóbrio, quase austero, desprovido de efeitos especiais ou imagens floridas. Isso se encaixa na inovação mais marcante da adaptação, sua renderização dos personagens não como animais, mas como seres humanos. “Depois de tirar as cabeças dos animais”, Miller disse à Life, “você começa a ver do que se trata. Uma criança pequena, cercada por pessoas apressadas e preocupadas, pensando: ‘é isso que significa ser um adulto?’”
O filme é permeado por uma atmosfera de lassidão, de languidez e catatonia, que às vezes se transforma em pânico e desamparo repentinos. Miller, novamente: “O livro, ao vestir tudo com roupas de animais, apresenta uma farsa doméstica disfarçada – disfarçada de sonho. […] Todos os níveis de autoridade, ordem e obediência estão ali refletidos.” O mundo comum aparece como um tecido de absurdo, incompreensivelmente inconsistente, arbitrário e autoritário, dominado por rituais bizarros, repetições e automatismos. É em si um pesadelo, uma espécie de transe. No testemunho solene e autista dos adultos que atormentam e perplexam Alice, vemos a loucura da própria ideologia: uma obra de sonho que esqueceu que é um sonho, e que também tenta nos fazer esquecer, varrendo-nos em suas urgências, nos deixando perplexos com sua lúgubre demência ou nos aterrorizando com sua violência repentina, imprevisível e insaciável.
A risada que essa Alice provoca – às vezes desconfortável, às vezes tumultuada – é uma risada que vem de fora. É uma gargalhada psicodélica, uma gargalhada que – longe de confirmar ou validar os valores de qualquer status quo – expõe a estranheza, a inconsistência do que foi tomado como senso comum. Não é este o riso que Michel Foucault descreve em uma passagem justamente renomada do Prefácio de A Ordem das Coisas, um livro que foi originalmente publicado no mesmo ano em que a versão de Miller de Alice passou na TV? Foucault se refere ali a uma história de Borges em que:
ele cita uma ‘certa enciclopédia chinesa’ em que está escrito que “os animais são divididos em: (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vira-latas, (h) os que estão incluídos nesta classificação, (i) os que se agitam feito loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, (l) etcetera, (m) os que acabaram de quebrar o vaso, (n) os que de longe parecem moscas”. No assombro dessa taxonomia, o que apreendemos em um grande salto, o que, por meio da fábula, é demonstrado como o encanto exótico de outro sistema de pensamento, é a nossa própria limitação, a grande impossibilidade de pensar aquilo. (16)
Essa perspectiva, esse riso de fora, percorre todo o trabalho de Foucault. Por toda a sua complexidade, densidade e opacidade, a principal obra de Foucault, de A História da Loucura, no início dos anos 1960, nos … através dos livros sobre sexualidade que ele publicaria após o Vale da Morte, parece girar em torno e repetir uma visão fundamental ou visão geral. … a arbitrariedade e contingência de qualquer sistema, sua plasticidade.
Se essa visão externa era consonante com a consciência psicodélica, no caso de Foucault, ela não tinha origem nas drogas. Foucault não consumiria LSD até quase uma década depois, quando se dirigiu ao Vale da Morte e tomou ácido em Zabriskie Point, local do filme de Michelangelo Antonioni sobre a contracultura.
Foucault, raramente confortável em sua própria pele, estava sempre procurando uma saída para sua própria identidade. Ele memoravelmente declarou que escrevia “para não ter um rosto”, e seus prodigiosos exercícios de erudição malandra e invenção conceitual, os labirintos textuais que ele meticulosamente reuniu a partir de inúmeras fontes históricas e filosóficas, eram um caminho para fugir dessa face. Outra rota era o que ele chamava de experiência-limite, uma versão do que era seu encontro com o LSD. A experiência-limite era paradoxal: era uma experiência dentro e além dos limites da experiência “comum”, uma experiência do que geralmente não pode ser experimentado. A experiência-limite oferecia uma espécie de truque metafísico. As condições que tornaram possível a experiência comum agora podiam ser encontradas, transformadas e escapadas – pelo menos temporariamente. No entanto, por definição, a entidade que passou por isso não poderia ser o sujeito comum da experiência – seria um X anônimo, um ser sem rosto.
Muito da música que saiu da contracultura dava voz a essa entidade do lado de fora, e a vez de Foucault na experiência-limite foi semelhante às experimentações populares à consciência. “[O] problema”, disse Foucault, em uma das entrevistas coletadas no livro Remarks on Marx,
não é recuperar nossa identidade “perdida”, libertar nossa natureza aprisionada, nossa verdade mais profunda; mas, em vez disso, o problema é avançar em direção a algo radicalmente Diferente. O centro, então, parece ainda ser encontrado na frase de Marx: o homem produz o homem. […] Para mim, o que deve ser produzido não é o homem idêntico a si mesmo, exatamente como a natureza o teria projetado ou de acordo com sua essência; pelo contrário, devemos produzir algo que ainda não existe e sobre o qual não podemos saber como e o que será. (17)
Em um comentário ao texto de Foucault, Michael Hardt argumentou que “o conteúdo positivo do comunismo, que corresponde à abolição da propriedade privada, é a produção autônoma da humanidade – uma nova visão, uma nova audição, um novo pensar, um novo amar”. (18)
Uma nova humanidade, uma nova visão, um novo pensar, um novo amar: esta é a promessa do comunismo lisérgico, e foi a promessa que você pôde ouvir em “Psychedelic Shack” e a cultura que a inspirou. Apenas cinco anos separaram “Psychedelic Shack” do hit inicial dos Temptations, “My Girl”, mas quantos mundos novos surgiram nesse meio tempo? Em “My Girl”, o amor permanece sentimentalizado, confinado ao casal, em “Psychedelic Shack”, o amor é coletivo e orientado para o exterior.
Em “Psychedelic Shack”, os Temptations estavam já há um ano no novo som que o líder não oficial do grupo, Otis Williams, havia convencido o produtor Norman Whitfield a desenvolver. Whitfield inicialmente relutara em mudar o som dos Temptations, mas sua eventual conversão levaria a algumas das produções mais impressionantes da história da música popular: produções que se baseariam nas promessas evocadas por “Tomorrow Never Knows”, mas que os Beatles em si raramente cumpririam. Whitfield ficou tão encantado com as paisagens sonoras psicodélicas que criou no estúdio que pressionou o The Temptations a lançar faixas com oito ou nove minutos de duração, com espaço para passagens instrumentais estendidas. Ele formou o grupo The Undisputed Truth especificamente como um laboratório para experimentar essas produções lisérgicas de formato longo. A experimentação de Whitfield com o estúdio como uma ferramenta de composição era um paralelo ao dub que Lee “Scratch” Perry estava criando na Jamaica. Os espaços sônicos que eles abriram também tratavam de uma experiência particular de tempo: um tempo distendido, um tempo que foi ao mesmo tempo desnudo e preenchido com formas improváveis de áudio, o que levava o ouvinte a uma imersão profunda no momento, mesmo quando embalado por pulsos e padrões rítmicos. Esse novo espaço-tempo seria posteriormente revisitado e reformado por novos exploradores, como Tom Moulton, Larry Levan e Walter Gibbons: os inventores da faixa de dance estendida, que por sua vez formariam a base dos gêneros psicodélicos como o house, techno e jungle.
O modelo para o novo som dos Temptations era Sly and the Family Stone, com traços de James Brown e Jimi Hendrix: uma matriz febril, composta por elementos que já estavam interagindo na época. A mudança no som foi mais do que uma mudança de estilo; também foi uma resposta a um novo conjunto de demandas e expectativas sobre o que a música poderia ser. Já não mais confinada a baladas de amor ou sons para animar torcida, a música popular agora podia trazer algum comentário social; melhor ainda, poderia alimentar e se alimentar das transformações sociais que estavam dissolvendo antigas certezas, preconceitos, suposições. Poderia se orientar pela confiança, raiva e assertividade que brotavam do movimento dos Direitos Civis, e poderia participar de um novo conjunto de relações sociais que dava uma amostra inebriante de como o mundo seria quando o movimento fosse bem-sucedido. Foi isso que Greil Marcus ouviu e viu em Sly and the Family Stone em seu grande ensaio de 1975, “The Myth of Staggerlee”:
O verdadeiro triunfo de Sly foi que ele tinha os dois lados. Todas as nuances de seu estilo, desde o brilho deslumbrante de seus fios de cabelo até a originalidade de sua música, deixaram claro que éramos seus próprios homens. Se a essência de sua música era a liberdade, ninguém era mais agressivamente livre que ele. No entanto, também havia espaço para todos na América, composta de negros e brancos, homens e mulheres, que cantavam “cada cabeça uma sentença” e estavam no palco para mostrar o que significava essa ideia de independência. (19)
Sly e a Family Stone realmente pareciam conseguir realizar tudo ao mesmo tempo: com um som que de alguma forma era desorganizado, improvisado e, no entanto, sinuosamente dançante; uma música que não era sentimental, nem santímona, mas cheia de humor e mortalmente séria, tudo ao mesmo tempo.
O riso de Alice, a liberdade lúdica e a ousadia encarnada por Sly e a Family Stone: elas poderiam ter sido executadas por uma guarda avançada, mas não havia necessidade de que se confinassem a uma elite. Pelo contrário, a pergunta que a presença deles no rádio e na TV voltava com insistência era: por que essa boemia não deveria estar disponível a todos?
Apesar de grande parte da surdez tradicional da esquerda e a hostilidade a essas correntes, a contracultura teve um impacto no local de trabalho, nas lutas conduzidas por um novo tipo de trabalhador. “É uma geração diferente de trabalhadores”, explicou J.D. Smith, tesoureiro sindical da fábrica de Chevy Vega em Lordstown, Ohio. “Nenhum desses caras veio do velho continente, grato por qualquer trabalho que pudessem conseguir. Nenhum deles passou por uma Depressão. Eles foram expostos – pelo menos pela televisão – a todos os movimentos juvenis dos últimos dez anos e não conhecem a desgraça de estarem desempregados.” (20)
Em 1972, a fábrica de Lordstown estava envolvida em uma luta por condições de trabalho que refletiam essa nova intolerância ao trabalho excessivo e ao autoritarismo. “Os trabalhadores de Lordstown”, Jefferson Cowie escreve,
tornaram-se um símbolo nacional coletivo para a nova geração de trabalhadores e foram emblemáticos a respeito de um amplo senso de alienação ocupacional. As pessoas gravitavam em direção da visão revigorante da juventude, da vitalidade, da solidariedade inter-racial escondidas do público atrás de personagens televisivos como Archie Bunker, da liderança trabalhista a favor da guerra e da crescente política da reação dos trabalhadores de colarinho azul. (21)
Lordstown fez parte de uma onda de ativismo em que essa “nova geração de trabalhadores” lutava pelo controle democrático de seus próprios sindicatos e dos locais em que trabalhavam. Visto à luz de tais lutas, o espaço social igualitário projetado em “Psychedelic Shack” não poderia ser descartado como um sonho passivo ou como uma distração da atividade política real. Em vez disso, músicas como essa eram um sonho ativo que surgiu de composições sociais e culturais reais, e que contribuíram para novas coletividades poderosas e uma nova atmosfera existencial, que rejeitava tanto a o trabalho maçante quanto os ressentimentos tradicionais. “Os jovens trabalhadores pretos e brancos curtem uns aos outros”, disse o presidente local da fábrica de Lordstown, Gary Bryner, “Há um entendimento. O cara com um cabelo black power, o cara usando um colar de contas, o cara com o cavanhaque, ele não se importa se ele é preto, branco, verde ou amarelo”. Esses novos tipos de trabalhadores – que “fumavam maconha, socializavam inter-racialmente e sonhavam com um mundo em que o trabalho tivesse algum significado” (22) – queriam conquistar o controle democrático de seu local de trabalho e de seus sindicatos.
Um pouco do mesmo fermento estava crescendo na Itália, onde um novo tipo de trabalhador era cada vez mais visível. “Essa nova geração de trabalhadores não tem muito a ver com a antiga tradição dos partidos trabalhistas”, diz Franco Berardi sobre a situação em Turim em 1973. “Nem nada a ver com a ideologia socialista de um sistema estatal. Uma recusa maciça da tristeza do trabalho foi o principal elemento por trás do protesto. Esses jovens trabalhadores tinham muito mais a ver com o movimento hippie; muito mais a ver com a história da vanguarda.” (23)
Lá por 1977, uma nova mistura social, uma “vanguarda de massa”, estava em vigor em Bolonha. Foi aqui, talvez mais do que em qualquer outro lugar do mundo, que o comunismo lisérgico se amalgamou como uma formação real. A cidade fervilhava com a energia e a confiança que surgem quando novas ideias se misturam com novas formas estéticas.
A universidade estava lotada com terroni (pessoas originárias do sul), alemães, comediantes, músicos e cartunistas como Andrea Pazienza e Filippo Scozzari. Os artistas ocupavam casas no centro da cidade e administravam espaços criativos, como a Rádio Alice e Traumfabrik. Algumas pessoas estavam lendo livros como Anti-Édipo, outras recitando poemas de Maiakovski e Artaud, ouvindo a música de Keith Jarrett e dos Ramones e inalando substâncias indutoras de sonhos. (24)
Ainda em fevereiro, o A/traverso, um zine publicado por Berardi e outros jovens militantes, produziu uma edição intitulada “A revolução é justa, possível e necessária: vejam, camaradas, a revolução é provável”:
Queremos expropriar todos os bens da Igreja Católica
Reduzir as horas de trabalho, aumentar o número de empregos
Aumentar o valor do salário
Transformar a produção e colocá-la sob o controle dos trabalhadores
Libertar a enorme quantidade de inteligência desperdiçada pelo capitalismo: a tecnologia tem sido usada até agora como um meio de controle e exploração.
Ela quer ser transformada em uma ferramenta de libertação.
Trabalhar menos é possível graças aos avanços da cibernética e da informática.
Nenhum trabalho em troca de renda
Automatizar toda a produção
Todo o poder para o trabalho vivo
Todo o trabalho para o trabalhismo morto.
Em 1977, essas demandas pareciam não apenas realistas, mas inevitáveis – “vejam, camaradas, a revolução é provável”. Claro, agora sabemos que a revolução não aconteceu. Mas as condições materiais para tal revolução estão mais estabelecidas ainda no século XXI do que em 1977. O que mudou para além de qualquer reconhecimento desde então é a atmosfera existencial e emocional. As populações se resignaram à tristeza do trabalho, mesmo sabendo que a automação está fazendo com que seus empregos desapareçam. Devemos recuperar o otimismo daquele momento dos anos 1970, assim como devemos analisar cuidadosamente todas as máquinas que o capital implantou para converter confiança em desânimo. Compreender como esse processo de deflação da consciência funcionou é o primeiro passo para revertê-lo.
NOTAS
- Esta é a introdução inédita de um novo projeto de livro proposto, escrito em 2016. É tudo o que resta deste trabalho.
- Herbert Marcuse, Eros e Civilização
- Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional
- Ibid.
- Herbert Marcuse, A Dimensão Estética
- Marcuse, O Homem Unidimensional
- Ibid.
- Margaret Atwood, The Heart Goes Last
- Andy Beckett, When the Lights Went Out: Britain in the Seventies
- Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll
- Danny Baker, Going to Sea in a Sieve
- John Foxx, “The Golden Section: John Foxx’s Favourite Albums”, Quietus
- Willis, Beginning To See The Light
- Ibid.
- Jonathan Miller, em Life, (25 de novembro de 1968)
- Michel Foucault, A Ordem das Coisas
- Michel Foucault, Remarks On Marx
- Michael Hardt, “The Common in Communism”, em Costas Douzinas e Slavoj Žižek (eds), The Idea of Communism
- Greil Marcus, “The Myth of Staggerlee”, em Mystery Train: Images of America in Rock ‘n’ Roll Music
- Jefferson R. Cowie, Stayin’ Alive: The 1970s and the Last Days of the Working Class
- Ibid.
- Ibid.
- Franco Berardi, Depois do Futuro
- Ibid.