As cidades dos CEOs: Trump, franchulados e o sonho de Thiel

Das inúmeras previsões, feitas com relativa galhofa em Snow Crash, romance pós-cyberpunk de Neal Stephenson de 1992 (lançado em português brasileiro pela Aleph), o uso da expressão avatar para definir nossas personas online e o próprio Metaverso são as mais (re)conhecidas. Mas existe um conceito mais pervasivo que se encontra no mundo real: a privatização completa do Estado.

Pelo menos duas dessas formas são abordadas em Snow Crash: os “burbclaves” (de “subúrbio” + “enclave”) e os “franchulates” (“franquia” + “consulado”). Quando uma crise hiperinflacionária destroi o governo federal dos Estados Unidos, agora reduzido a pequenos bolsões onde operam os “Federais”, dos poucos que recebem salário em dólares (o memorando proibindo a galera de fazer um uso, digamos, criativo das notas de trilhões de dólares é especialmente hilário), boa parte do seu território é privatizada.

Os burbclaves são menos importantes para a história, mas os franchulados (como foram traduzidos por Fábio Fernandes) são quase centrais na trama, que envolve um vírus de linguagem (olha lá o Burroughs) transmitido pelo sangue e por computador – uma loucura.

Tais franchulados são controlados por entidades como a Máfia (caso da Cosa Nostra, que ao mesmo tempo entrega pizzas) e têm diferenças extremamente marcantes entre um e outro. Somos apresentados a vários deles: a Narcolombia (que se sabe pouco sobre, no livro), Nova Sicília (da Máfia) e Mr. Lee’s Greater Hong Kong (com capacidades tecnológicas mais amplas do que a maioria das pessoas têm acesso), Metanzania (apenas para residentes negros), Nova África do Sul (apenas para supremacistas brancos) e por aí vai.

Com uns 2 km² de extensão por unidade, em média, esses franchulados concorrem entre si, atraem cidadãos-clientes com suas diferentes regras e culturas (nazistas na Nova África do Sul, ítalo-mafiosos na Nova Sicília, adeptos da religião do Reverendo Gates nos Portões Perolados) – a Mr. Lees Greater Hong Kong, por exemplo, não permite a entrada de nenhuma arma, e conta com robôs-ciborgue para cuidar da segurança.

Mas bem, e aí? Que que eu tenho a ver com isso?

Bom, certos setores BEM IMPORTANTES do neo-tecno-feudalismo que estão à frente do governo Trump nos EUA sonham com esse futuro, como se fosse algo a ser desejado (lembrando que “o cyberpunk era um alerta, não um plano”, como andamos sendo lembrados nesse distópico 2025 de nosso senhor).

Não há nenhuma novidade na “privatização do espaço público”, mote que ouvimos cada vez com mais força desde os anos 1990, com parques dando lugares a shopping centers. Essa é literalmente uma parte central da história do capitalismo, desde o início do “enclosure” (cerco) britânico no século XV (antes do início da colonização do Brasil!), onde o nascente capital começou a acabar com as terras “comuns” (que no Brasil vimos importadas sob o nome de “faxinais”, especialmente no sul do país) dos peões, transformar qualquer coisa que seria pública (incluindo terra, água, ar) em propriedade privada é o motor de expansão do sistema.

Mas a nova proposta, encampada por gente como Peter Thiel (sim, ele, a bicha nazi do apocalipse que transformou o Glenn em cachorrinho dos republicanos) ganhou uma nova tração com o governo Trump. A “ideia” se chama “Network Nation” (nação em rede), e foi delineada pelo “empreendedor” e cryptofacho Balaji Srinivasan em seu livro com o mesmo nome. O conceito é basicamente criar comunidades online que se reuniriam para comprar pedaços de terra e decretarem Estados naqueles territórios, que mais tarde seriam reconhecidos por outros Estados-nações.

Não é um conceito muito distante, no papel, das confederações nativo-americanas que incendiaram os sonhos do iluminismo europeu no século XVII, ou de tentativas de autogestão anarquistas, da Colônia Cecília paranaense à Catalunha liberada da Guerra Civil Espanhola.

Mas a diferença está no seguinte: acima de tudo, esse novo conceito sugere a criação de cidades-corporações, que seriam administradas como empresas, sem nenhuma participação democrática (exceto na figura de seus acionistas), comandadas por CEOs. Essas empresas se estruturariam em redes, que formariam essas tais “nações”.

Já há inúmeros experimentos online de tais “nações”. O infatigável parteiro do Novo Mundo Facho, Peter Thiel, já está investindo em ao menos sete iniciativas semelhantes ao redor do globo. Mas aí vem a treta. Durante a campanha à reeleição, Donald Trump anunciou que quer criar, agora no governo estadunidense, 10 novas “Freedom Cities”, em terras federais (o governo federal é dono de pouco menos de 1/3 do território estadunidense, incluindo largas porções de desertos, do Arizona ao Alasca), para “reabrir a fronteira”. Vai dar certinho.

A questão principal nesse caso é que tais cidades não estariam sob o jugo de leis estaduais ou municipais, apenas do novo “eterno” governo federal republicano. Ou seja, é pra brincar mesmo. Esse ensaio de Gil Duran, principal observador da situação atual dos techbros no poder, explica bem a treta (sigam ele!). E, melhor ainda, esse vídeo aqui dá uma boa noção do nível da treta:

E o Brasil? Bom, o Brasil é aquilo. Se já tivemos nossos exemplos de cidades empresariais, como a inesquecível Fordlândia, ao mesmo tempo a questão da terra é essencial para se entender esse feudo uma vez chamado Estados Unidos do Brasil. Do MST e Teia dos Povos e LCP à UDR e Bancada Ruralista, é o latifúndio, ainda, a forma básica de organização econômica do país, e não deve nos deixar tão cedo (alô reforma agrária!).

Enquanto isso, Lula sofre para desmentir a fake news (espalhada por fãs de Trump, lógico), de que teria entregue 14% do território nacional para uma empresa privada (deve ser backlash da Guerra dos Bonés, certamente). Se a gente seguir nessa toada de “acontece nos EUA, acontece no Brasil”, em breve eu e você estaremos morando na AmBevlândia,e sinceramente, eu estou farto de cerveja de milho.

  • Amauri Gonzo é o Caronte das Viagens ao Fim da Noite, antifa, jornalista, palestrinha profissional e marxista heterodoxo. Foi editor de sites como Vice Brasil, + Soma e Ponte Jornalismo, repórter no G1 e mais. Já traduziu e revisou títulos para editoras como Veneta, Autonomia Literária e sobinfluencia, além de ser coordenador de programação da FLIPEI.

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