Além de se cacifar para entrar no rol de horrores perpetrados pelo Estado brasileiro (Carandiru, Paralelo 11, Araguaia, Canudos, Contestado, Caldeirão de Santa Cruz do Deserto), o Massacre do Alemão e Penha serviu para nos lembrar a tranquilidade que temos diante da barbárie – até pior, o desejo por barbárie que espreita por trás da nossa aparente hospitalidade. Mesmo que se questione números como os 80% dos moradores de comunidades que concordariam com o massacre (na estranha pesquisa da Atlas/Intel), é certo que no País do Linchamento não é pequena a parcela da população que cai para algo mais perverso ainda do que se costuma chamar, no meio dos direitos humanos, de “populismo penal”.
Isso não quer dizer que a saída para um governo (dito) de esquerda seja simplesmente se resignar a entregar o sangue que lhe parece exigido por tal opinião “pública”. Desde quando eu era um jovem universitário se fala dos riscos ideológicos criados a partir da dieta cada dia mais permanente de programas “policiais” passando o tempo todo na TV aberta. Sou da era (e em parte, da terra de) Alborghetti e vi como os maiores absurdos se tornam cotidianos através do processo de normalização levado a cabo por esse tipo de programação – seja a preocupação com uma insegurança que não existe, seja as “soluções” invariavelmente violentas sempre apresentadas, esse tipo de programação distorce a realidade acompanhada pelo sujeito e o transforma, aos poucos, em um “cidadão de bem” sempre sedento por sangue.
Costumo repetir que a segunda coisa mais importante que o finado Pepe Mujica fez pelo Uruguai, além da legalização do aborto, foi o banimento desse tipo de programação pára fora do chamdo “horário nobre” da TV aberta cisplatina. O caso que levou a tal debate e eventual lei (a chamada Lei de Meios) não é lá muito diferente do que encontramos numa manhã de terça-feira qualquer em algum Cidade Alerta da vida: a execução de um garçom, flagrada por câmeras de segurança, durante um assalto em 2010. Quatro anos depois, após alguma gritaria dos meios de comunicação, a tal da Lei de Meios foi aprovada e o Uruguai se livrou de um problemaço: a distorção da opinião pública a respeito das questões de segurança.
No Brasil não existe nenhuma previsão de que se debata (infelizmente) esse problema no Congresso. Mas ainda assim, há maneiras de se tratar esse assunto que podem ser levadas à cabo sem tanta treta, mas é preciso, pelo menos, que se leve a questão a sério.
Quando se viu finalmente livre da censura, o Brasil não tardou em testar todos os limites possíveis para a liberdade e expressão recém-conquistada com a CF 88 (logo antes mesmo, para ser mais exato). Se por um lado isso nos levou a maravilhas como revistas em quadrinhos como Animal e Chiclete com Banana, isso também nos legou situações bizarras como a tal da guerra pela audiência nos domingos na TV aberta. Para quem é muito jovem para sacar isso, Faustão e Gugu foram aumentando a aposta nos absurdos produzidos ao vivo durante seus respectivos programas vespertinos dominicais na Globo e no SBT, o que começou com uma simples “Olimpíadas do Faustão” copiada do japonês “Takeshi’s Castle” se transformou com o tempo em aberrações como sushi erótico, Latinhinho, concurso infantil de dança da garrafa, banheira do Gugu e outros quetais.
Foi uma briga desgraçada, capitaneada pelo Ministério Público de diferentes estados (e por figuras mais ou menos polêmicas e danosas, como o famoso juiz Siro Darlan, apelidado pelo Casseta e Planeta de Siro Taleban pelo seu zelo em proibir a exibição de seios femininos em horário nobre). Ao fim, com certa ajuda dos próprios programas (tipo o Gugu exibindo uma entrevista fake com uns mascarados que seriam do PCC, aiai), a moralidade se sobressaiu e nunca mais as tetas da hoje atriz pornô Luiza Ambiel animaram as tardes de domingo nas salas brasileiras.
A principal arma do MP foi a chamada “classificação indicativa”, que serve para indicar o tipo de maturidade que se exige de um espectador para cada tipo de programa exibido na TV (e que também vale para videogames, RPGs de mesa e outros quejandos), instituído no começo dos anos 1990 em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adlolescente (ECA). Essa classificação, na TV aberta, costuma indicar certo horário para a exibição dos programas a partir da ideia de que criança não deveria estar vendo TV muito tarde. Ou seja, programações dentro do espectro 18+ (programas com nudez frontal e/ou que contenham, veja só, “apologia à violência” e “crueldade”) deveriam ser exibidos só depois das 22h. Incrível, não?
Bom, sabe-se que essa briga, pra quem topasse, seria inglória. Em 2016, o STF decidiu, em uma ação movida pelo PTB (que surpresa) que a tal “indicação”, no caso da TV aberta, seria só uma indicação mesmo ~ não seria necessariamente um sistema a ser seguido diferindo faixas de horário para conteúdos mais adultos. “Nós temos que superar esse modelo em que o Estado substitui a educação das pessoas de maneira absoluta, tirando e subtraindo a liberdade das pessoas de se autotutelarem”, disse na época o então jovem prodígio Dias Toffoli, ministro do Supremo. Novamente: não é necessária uma lei nova para que se enquadre os programas policiais no Brasil, mas falta vontade de todo mundo, especialmente do nosso sistema de justiça, que, para variar, acha que vivemos sob a constituição estadunidense e sua Primeira Emenda. Só nos resta chamar o Xandão.

