O adeus a Pepe Mujica, o guerrilheiro-presidente que lembrou ao mundo que o socialismo é, acima de tudo, a vida a ser vivida
Em 2015, um Pepe estava botando fogo no mundo, enquanto outro deixava o cargo máximo de uma republicazinha na América do Sul. Em 13 de dezembro de 2025, um Pepe nos deixava, enquanto o outro tinha sido morto pelo próprio autor e caído no esquecimento da memesfera.
É sim temerário comparar as carreiras políticas de José “Pepe” Mujica, ex-guerrilheiro tornado presidente do Uruguai com o meme Pepe the frog, personagem de quadrinhos que se tornou símbolo da alt-right que levou Trump e a extrema-direita ao poder nos EUA, criando a nova onda fascista contra a qual ainda lutamos. Mas se Mujica descobriu algo – e descobriu muitas coisas – durante a vida, foi o poder das imagens, especialmente quando usadas como exemplo.
Talvez o mais bem quisto presidente latino recente entre a esquerda do Primeiro Mundo, graças aos seus hábitos franciscanos que lhe renderam o título de “presidente mais pobre do mundo”, além de uma revolução “soft” no Uruguai que, enquanto tirava centenas de milhares da pobreza em seu país, realizava reformas numa América do Sul estagnada (como no essencial caso do acesso ao aborto e da importante legalização da maconha). Pepe veio de uma família de militantes políticos nacionalistas, e se bandeou para a esquerda influenciado pela Revolução Cubana e pelo exemplo do comandante Che Guevara.
Importante líder Tupamaro (como se chamava a guerrilha urbana uruguaia, em homenagem ao rebelde peruano autointitulado Tupac Amaru II – sim, o cidadão que inspirou o nome do rapper), Mujica teve uma vida de guerrilheiro que daria (e rendeu) um filme: participou da tomada da cidade de Pando, foi baleado seis vezes durante uma captura, fugiu algumas vezes do cárcere, e terminou preso, à beira de um golpe de Estado que o deixaria trancafiado por 13 anos em condições completamente desumanas, sendo feito oficialmente “refém” da ditadura cívico-militar uruguaia – que ameaçava matá-lo, junto com outros 8 guerrilheiros detidos, se houvesse alguma tentativa de resgate ou se alguém incomodasse o recém-instalado regime.
Pepe foi reabilitado em 1985, ao fim da ditadura uruguaia, mesmo período em que foram caindo as principais ditaduras no continente – 1982 na Bolívia, 83 na Argentina, 85 no Brasil, 89 no Chile e Paraguai. As imagens do período mostram um homem alquebrado, como se a prisão lhe tivesse tirado a alma. Mal sabiam os militares que dali a um quarto de século estariam lhe prestando continência.
Talvez a maior marca pública de Mujica tenha sido seu estilo humildão de tudo, que parece derivado de seu longo cárcere. Ao contrário do que aconteceu com milhares de militantes argentinos e chilenos, mortos e desaparecidos das mais diversas maneiras, o extenso período que passou encarcerado, que deveria ter lhe “quebrado” a vontade revolucionária, parece ter acendido a sua chama, na verdade. Em uma entrevista dada logo após ser solto, falava ainda de que o futuro do mundo seria o socialismo. Mas o que parece que o colocou na posição de avant la lettre do estoicismo contemporâneo (normalmente mais papo de coach do que um convite a se viver uma vida diogenística em si) foi um amor à vida livre, mais importante que qualquer bem material.
Porém não nos enganemos. Por mais que a postura de “presidente mais pobre” tenha servido de influência para Jair Bolsonaro (e uma multidão posterior de políticos de extrema direita brasileiros), sempre pronto para meter uma imagem de “simprão di tudo” (contrastando com o gosto dos filhos pelo bem bom, e escondendo muito do luxo que se cercou), seja no pão com leite condensado, na sujeira do frango com farofa ou nas milhares de fotos das suas internações hospitalares, Mujica, como se diz nos guetos estadunidenses há século, talk the talk and walk the walk (mata a cobra e mostra o pau) – apesar de servir como um trunfo de imagem, a atitude era sincera e vinha acompanhado de um discurso em palavras simples, mas de sinceridade e reflexão profunda.
Apesar de o jeito de se apresentar fingir certa modéstia, a vaidade de Pepe parecia estar em outro lugar, e ela foi muito bem servida: seu objetivo era intelectual, influenciar as novas gerações a ver o mundo por outro viés. Se ainda estamos presos no realismo capitalista, Mujica foi um dos muitos soldados do socialismo a tentar mina-lo, com mais sucesso que tantos de nós. Sua palavra sobre a necessidade de se viver sem o tal “luxo” da vida contemporânea no Primeiro Mundo (afinal, o que vale é ter saúde, educação, e TEMPO, acima de tudo, para se viver) ainda segue e seguirá influenciando muita gente. Só alguém privado da liberdade de se fazer o que quiser por 15 anos vai entender que isso está muito além de qualquer traquitana tecnológica no fazer da vida. Seu fusca azul (imagina se as crianças uruguaias tivessem que lidar com a tal brincadeira do “fusca azul”? Risos) e Manuela, a cachorra de três patas que adotou a título de filha (ela perdeu a pata atropelada pelo próprio Mujica, e a esposa de El Viejo, como é carinhosamente chamado, perdeu a capacidade de gerar filhos após as sevícias da ditadura chilena), junto com a cuia de chimarrão e a térmica que o pareciam acompanhar em qualquer charla se tornaram símbolos de um neo-franciscanismo que se via alegre, indignado com as dores dos pobres mas feliz por estar leve, livre e solto, tanto da tortura da privação física de liberdade quanto do intricado shibari da rat race do capitalismo tardio.
Quando digo no título deste texto que Mujica nos fez enxergar um novamente que outro mundo é possível – e veja, ele nunca escondeu seu pragmatismo, especialmente enquanto presidente, dizendo que havia feito tudo que podia para minar os efeitos mais deletérios do Capital, mas que o futuro mesmo era o socialismo – é porque ele nos lembra sempre do essencial da fase mais recente (e, vamos combinar, desde sempre) do capitalismo: o controle do tempo livre dos seres humanos. O tempo, no fim, é o “luxo” do Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado, é o que nos libera para vivermos o Comunismo Lisérgico, é, para lembrar Marx, o que nos permitiria, sob o comunismo, ” caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico”.
E, logicamente, como o velho novo Lula que falava na velha Europa após a terceira vez eleito que faltava à esquerda “criar novas utopias”, Pepe encontrou no Realismo Capitalista (sem nunca usar esse termo), o culpado pela nossa miséria corrente, como ele explica neste texto do livro Sobrevivendo ao século XXI, parceria com Noam Chomsky: “um sistema social capitalista não se resume apenas a relações de propriedade; é também um conjunto de valores comuns à sociedade. Esses valores são mais fortes do que qualquer exército e são a principal força que mantém o capitalismo vivo hoje”.
Para combater esse mal e nos liberar do trabalho morto para vivermos o tempo que temos nesse mundo, Mujica nos exorta a imaginar um mundo onde seja mais fácil imaginar o fim do capitalismo (e principalmente, o consumismo) do que o fim do mundo: “parece-me que a criatividade deve ser incentivada, porque vivemos num mundo com uma esquerda velha que vive só de nostalgia, uma esquerda que tem dificuldade em perceber por que falhou e tem grande dificuldade em imaginar novos caminhos a seguir. Acredito que este é um momento de muito ensaio, muita experimentação e criatividade”. Seu chamado à guerra cultural é como um apelo de resistência à contrainsurgência que fez o outro Pepe, o primeiro finado sapo, o símbolo da vitória dos incels contra os normies. Eu sei que para você, leitor materialista, o mundo real é o que importa, mas a matriz das redes sociais é o deserto do real em si, e a batalha ideológica é uma que precisamos ganhar se quisermos cooptar nossas balas contra os generais.
Adeus, companheiro Pepe. Estaremos aqui, tentando deixar de presente para as novas gerações a mesma generosidade de pensamento com a qual nos brindou na segunda metade da sua longa vida. Afinal, nada melhor que um fazendeiro que ganhava a vida pós guerrilha e cárcere para se fazer entender que podem cortar um, duas, dez flores, mas não conseguirão deter a chegada da primavera.