A ‘hiperstição’ dos aceleracionistas X o punhetaço do ‘hipersigilo’ de Grant Morrison

Quem veio primeiro: o CCRU ou Os Invisíveis?

A primeira vez que li sobre o termo “hiperstição” (juro que não me lembro onde), fiquei encafifado: eu conhecia o conceito de alguma maneira, mas não com esse nome. Rapidinho me veio à mente: não é nada tão diferente do “hipersigilo” que Grant Morrison, roteirista escocês de quadrinhos famoso por trabalhos como Doom Patrol, Animal Man e All-Star Superman,criou com Os Invisíveis. Explico.

Da mesma maneira que “realismo capitalista” pode ser substituído por “pós-modernismo” (segundo Mark Fisher, tá lá no livro) ou “ideologia do capitalismo tardio”, de certa forma “hiperstição”, a ideia de que podemos criar algo que se transforme em real através de uma formulação ficcional daquele desejo, pode ser substituído para um “sigilo”, como explica Grant Morrison no texto abaixo. Vou mais longe: “hiperstição” é um nome mais chique para uma formulação meio torta duma espécie de “práxis ficcional” marxista. Afinal, de certa forma resumida na clássica “tese 11” das “Teses Sobre Feuerbach” (“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo“), a práxis representa a ação do sujeito (enquanto indivíduo E também enquanto classe) em um materialismo histórico que se vê preso sob o “sujeito automático” conhecido como Capital. A práxis, para Marx, é onde o sujeito faz a história, ao invés de ser feito por ela – uma das grandes formulações derivadas da “inversão de cabeça para baixo” do pensamento hegeliano.

Mas bem, vejam só. Se tem uma coisa que o CCRU (Cybernetic Culture Research Unit, Unidade de Pesquisa sobre Cultura Cibernética) fez bem, especialmente em relação ao jovem que conheceu a turma como “aceleracionista” (termo que só vai aparecer mais de década depois do fim do CCRU) foi, como acontece com bons artistas, obscurecer algumas de suas fontes mais óbvias, do mesmo jeito que o Fugazi ficava falando sobre a  influência de Ted Nugent no som deles mesmo que qualquer pessoa com ao menos um ouvido consiga sacar que as inspirações maiores deles eram mesmo Gang of Four, krautrock e dub (mas não só). Claro que se falava de William Gibson, mas nenhuma menção (que eu lembre, vai saber) foi dada a Neal Stephenson, Robert Anton Wilson ou Grant Morrison. Nas minhas experiências com os aceleracionistas do momento, não achei ninguém que tenha lido Os Invisíveis (devem existir, mas pô, era pra ser tão obrigatório quanto Fanged Noumena).

Mas existem pistas sim. Um exemplo dos mais estranhos é que o D-Generation, projeto de música eletrônica de Mark Fisher com Simon Bidell e Lee Thompson (não confundir com a banda de hard glam horrível da mesma época), lançou apenas um disco (além de uma demo), intitulado Entropy in the UK, nome de um arco de história d’Os Invisíveis. Mas, olha que fita: o arco com Entropy in the UK começou a ser publicado em dezembro de 1995, enquanto o EP do D-Generation é datado de 1994. E mais: Gideon Stargrave, personagem principal desse arco de histórias d’Os Invisíveis, é baseado em Jerry Cornelius, personagem de uma série de livros do autor de ficção científica britânico Michael Moorcock, que é também representado em todo o material visual do D-Generation. Quem influenciou quem? Talvez Grant Morrison possa dizer, mas boa sorte tentando perguntar isso pra elu (sim, desde pelo menos 2020 Morrison se identifica como uma pessoa não-binária). 

Mas e aí? Bom, a possibilidade principal é que Morrison, um grande consumidor de música popular (esse era um dos maiores trunfos dos roteiristas britânicos de quadrinhos em relação às suas contrapartes estadunidenses; todo mundo, de Alan Moore a Jamie Delano, passando pelos cancelados Neil Gaiman e Warren Ellis, manjava de som e de cultura popular em geral, liam livros etc) , ouviu falar no grupo e gostou do título.

O jovem Maquinho Pescador em 1994, na foto de divulgação do D-Generation

Afinal, eram aos anos 1990, e “it’s all happening”, para citar Penny Lane em Quase Famosos (ou “mil fita acontecendo”, pra citar o Poeta). Para um jovem zoomer (ou pior, vai que uma geração alpha lê isso daqui), pode parecer estranho que essa interseção entre os millenials mais geriátricos e os geração X mais descolados, que vivem para cá e para lá falando que “no meu tempo tinha que gravar música em fita K7”, tinha acesso a conceitos que hoje se consideram tão acessíveis a qualquer um que digite “Reddit” no seu campo de buscas favorito, mas para um underground mucho doido ideias como tulpas ou sigilos de magia do caos ou sei lá o que deveriam ser tão fáceis de se achar quanto o Necronomicon original. Mas juro: a gente sempre existiu, só que simplesmente não era coisa de normie esse tipo de referência. Ou até era. Deixa eu me usar como exemplo:

Eu tinha 12 anos de idade quando Vampiro: a Máscara foi lançado em pt-br. Eu já era um “rpgista” (amo o termo, na moral) e estava chegando na adolescência sofrendo com espinhas e com o bullying. Nerd desde pequeno, foi mais fácil ainda virar um nerd-freak adolescente com acesso a esse tipo de conhecimento. O manual de Vampiro, que comprei naquele mesmo ano, moldou muito do que passei a ouvir e procurar para ler na época. E depois vieram outros títulos, como Lobisomem: o Apocalipse, e o genial Mago: a Ascensão. Eu já era escoteiro (vai vendo) e Lobisomem era legal, porém eu já tinha bastante contato com a natureza, mas Mago, bicho, Mago. Foi outra paulada na cachola, nível descobrir Nirvana, Pixies ou Hüsker Dü. Ali estava basicamente, num jogo (recomendado para maiores de 18 anos, diga-se), tudo que eu precisava para entrar nesse universo: a ideia de magia como modificação da realidade a partir da vontade humana, experimentos com estados alterados de consciência (da meditação às dorgas), uma caralhada de citação que eu nem lembro mas gostaria muito de lembrar (faço aniversário logo, aceito uma edição de presente [risos]).

E a partir daí foi só pra frente. Internet, e-zines (sim, o Cardoso Online, ele memo), um dia me aparece um negócio chamado MP3 que você demorava uma madrugada inteira (no PC do trampo) para baixar uma única música no Napster ou Kazaa (o eternamente lindo SoulSeek demoraria mais alguns anos). Essa obsessões nunca me deixaram, li e reli coisas completamente doidas da época assim que pude ter acesso a elas (tipo Apocalypse Culture, título maldito que foi a primeira coisa que comprei no Kindle).

E 2011, antes de muito do hype sobre Fisher (e ainda mais Land) eu resolvi que ia ler Os Invisíveis inteiro, já que tinha lido só alguns primeiros arcos em pt-br lançados pela, sei lá, Brainstorm Editora (acho que era esse o nome). Eram anos Lula-Dilma, nois não tava magro, e havia comprado recentemente um iPad (única traquitana da Apple que adquiri na vida). Baixei uma cacetada de quadrinhos, incluindo Os Invisíveis completo. Mas só quando abri os arquivos me dei conta com o ouro que tinha achado: ao invés de ter baixado os trading paperbacks (livros que reúnem várias edições num volume só de algum quadrinho), os scans era das edições ORIGINAIS dos gibis. Ou seja, eles tinham ali todas as seções de cartas e editoriais escritos na época em que cada exemplar foi lançado, e que são normalmente deixados de fora de qualquer compilação futura de gibi.

Capa do primeiro volume da nova edição brasileira de Os Invisíveis

Lógico que li tudo isso também, sempre gostei muito dessas seções quando acompanhava qualquer título da Liga da Justiça Internacional de Keith Giffen que conseguia achar no único sebo que existia no buraco do interior do Paraná onde cresci. E meu espanto foi, quando li, às gargalhadas, o texto abaixo, publicado no número 16 da primeira série de Os Invisíveis (são três no total, bagulho durou), de novembro de 1996. Mas bem, é um lance sério (até certo ponto). Em uma das explicações mais simplificadas que já vi do conceito de sigilo na magia do caos, Morrison convocava os leitores a um punhetaço para manter Os Invisíveis rodando, preocupado que estava com a “crise dos quadrinhos” da vez. Foi assim que saquei, durante a leitura e mais pesquisas, que Grant criou o título com a ideia de que ele fosse um “hipersigilo”, uma ficção que se destinava a mudar o mundo pela sua própria existência. Morrison se colocou visceralmente e literalmente no gibi, na figura do personagem King Mob (nome tirado de uma gangue situacionista britânica que operou nos anos 1960), e, entre outras, passou por maus bocados em termos de saúde exatamente durante um arco de histórias onde King Mob era brutalmente torturado. Vai saber.

Para terminar, outro detalhe: quando fui atrás desse texto original para traduzi-lo, depois de uma interação com a gênia Letícia Cesarino no BlueSky, descobri que era impossível de achá-lo online. Novamente, como venho reiterando há anos (desde 2011 ao menos), uma das maiores mentiras que existe é que “dá para achar tudo na internet”. Tive que recorrer a um HD externo para encontrar (ufa) o tal texto. Verti para o português e colo abaixo o original em inglês (se alguém quiser meter um OCR, manda bala, mas me credita por favor! Link é de graça!). Pois então, divirta-se (espero) como eu me diverti:

Os Invisíveis – V01 016 – Invisible Ink

Cê acredita mano? Uma página inteira de novo só de eu escrevendo? Vou salvar o grosso das cartas para a próxima edição e, no lugar disso, usar essa página para trazer informação e propor um maravilhoso experimento mágicko. 

Alguns de vocês devem estar cientes de que a indústria de quadrinhos está no momento, e por várias razões, passando por um de seus periódicos “declínios”. O que significa é que lojas de quadrinhos estão fechando e as vendas estão caindo drasticamente, por todo lugar. Porém, enquanto X-men e Spawn podem se dar ao luxo de cair de milhões de exemplares vendidos para a marca de centenas de milhares, os títulos menos mainstream, ou que não sejam sobre super-heróis, não têm essa mamata.

Outros criadores da linha Vertigo têm suas próprias histórias de choro e vela para contarem em seus títulos, mas no caso de Os Invisíveis, perdemos 6 mil leitores apenas nos últimos dois meses. Se esse declínio seguir nessa toada, o título em breve vai deixar de ser viável economicamente e vai, inevitavelmente, ser cancelado. Acredito que não há nenhuma necessidade de isso acontecer, e queria convidar aqueles de vocês que querem continuar lendo Os Invisíveis a participar de um ato de mágicka global, usando este sigilo que eu preparei:

É assim que vai funcionar:

Um sigilo é uma abstração de um desejo particular ou de uma intenção mágicka. Digamos, por exemplo, que seu desejo pode ser resumido na frase “é meu desejo visitar o bunker de Hitler” (vai saber, mas deve ser o desejo de alguém) – o que você deve fazer na sequência é eliminar todas as vogais e consoantes repetidas da frase, deixando a seguinte sequência: MDSJVTRBNKHL. isso pode ser transformado em um mantra, ao se colocar outras vogais,  produzindo uma palavra sinistra e bárbara como Midesjuvetrabinikhilo, ou, no caso do meu método favorito, transformar ela em um sigilo ao juntar todas as letras em um único glifo. A ideia é que o desejo original, reduzindo à uma abstração, pode ser implantado mais facilmente no subconsciente, onde vai ficar trabalhando. Quando se cria sigilos, é melhor começar com desejos bem específicos, que tenham pelo menos alguma chance de acontecerem. Fazer magia tem muito a ver com o arranjo de aparentes coincidências e a providência de se dr atalhos para que os desejos fluam por eles, ou, para se usar termos mais básicos, não adianta sigilizar para ganhar na loteria sem comprar um bilhete de loteria. Os sigilos são carregados ao se concentrar neles em momentos em que a mente consciente é atravessada por estados de excitação ou calma extremas – dor intensa, exaustão produzida por dança ou outra atividade física, meditação profunda, medo abismal, o momento em que você salta de bungee jump ou de paraquedas, o momento do orgasmo, etc.

De todos os métodos disponíveis, o mais rápido e fácil é manter a imagem do sigilo na mente no momento do orgasmo. A não ser que você seja um adepto do tantra, a masturbação tende a ser a maneira mais simples de se atingir o foco necessário: é um lance privado, é garantido e a maioria de nós já é especialista nisso. Nessa altura, leitores mais pudicos podem sentir a necessidade de jogar este gibi no chão, enquanto outros devem estar gargalhando, incrédulos, mas vamos ver como vai ser a próxima vez que eles estiverem batendo uma pensando em (insira aqui o nome da pessoa homenageada). A coisa boa do método de carregamento de sigilo através da masturbação é que ela permite que você toque a sua punheta/siririca em nome de uma necessidade espiritual, e as pessoas que ainda estão rindo fininho enquanto lêem isso são as que eu mais insisto que deveriam tentar essa técnica, se não pelo bem do meu querido quadrinho, pelo menos em nome da simples experimentação. Eu era bastante cético até que tentei e descobri que realmente funciona. Usando sigilos eu já curei doenças “incuráveis”, encontrei uma guitarra roubada, localizei animais de estimação perdidos, etc, etc. E se você não apenas não acreditar em mim, mas também não tentar, então vale a pena dar uma olhada na parte de você mesmo que se sente ameaçada por algo assim se tornar verdade.

Então… Esta edição de Os Invisíveis deve chegar às bancas no começo de novembro, creio. Logo, vamos combinar entre nós que desejamos utilizar essa técnica para ativar o sigilo de aumento das vendas acima para marcar que vamos carregá-lo a qualquer momento do dia ou da noite do dia 23 de novembro de 1995, o dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Não obstante as opiniões dos “cristãos preocupados”, isso não é algo “oculto” ou “demoníaco”, mas sim uma tecnologia psíquica simples e funcional à qual todo mundo deveria ter acesso. Concentre-se no sigilo, mantenha a sua imagem na mente no momento do orgasmo e então destrua-o e nunca mais pense nisso. Destruir este exemplar totalmente, nem que seja só esta página da seção de cartas, pode ser particularmente efetivo para nossos fins. E agora que você conhece a técnica, você pode criar seus próprios sigilos (mas eu recomendo que comece com coisas pequenas, e também para perceber como é mais simples fazer coisas boas para os outros).

Apenas para garantir os resultados, e para criar um caminho para a coincidência agir, vamos entrar na Fase II. Para isso, peço a cada um que está lendo isto e que queira participar, a fazer um esforço para convencer ao menos uma pessoa a comprar o número 17 de Os Invisíveis. Se você tem amigos interessados em conspirações, se você tem amigos interessados em OVNIs e teorias sobre abdução por OVNIs, se você tem amigos que gostam de Arquivo X, amigos que são fetichistas, amigos interessados em Aleister Crowley, Austin Osman Spare, Magia do Caos, amigos que lêem sobre mistérios antigos ou mitologia comparativa, amigos que usam drogas, amigas travestis ou clubbers ou que apenas não tenham nada melhor para fazer, se você tiver pelo menos algum amigo, tente convencer apenas um deles a comprar a edição #17 d’Os Invisíveis. Da mesma maneira, se você surfa na internet, procure grupos de Conspirações, OVNIs, grupos anti autoritários, grupos autoritários, grupos de travestis, magos, paranoicos, fãs de Lovecraft, gente que quer ser o novo Terence McKenna, ciberxamãs, freaks, perdedores, cartomantes, e fale para eles sobre Os Invisíveis. Usando esses métodos, creio que dobraremos as vendas, no mínimo.

Novamente, por que você iria querer dobrar as vendas de Os Invisíveis? Sei lá. A minha posição nisso é óbvia – eu posso sobreviver a essa crise dos quadrinhos escrevendo um monte de gibis de super-heróis mainstream (algo que que eu quero fazer de qualquer maneira), mas Os Invisíveis é meu projeto pessoal, e sem esse tipo de veículo para minhas especulações mais doidas, eu me sentiria bem triste e insatisfeito enquanto um roteirista. Eu gostaria de ver esse quadrinho continuar porque tenho uma necessidade ardente de contar essa história. Você, como leitor, tem outras motivações,obviamente, mas se você gosta de ler essas fitas malucas da Vertigo, então é do seu interesse me ajudar esse pequeno cantinho do jardim dos gibis.

Quero ouvir um “YEAH!”

Conto pra vocês depois o que rolou. No próximo mês, voltaremos à programação de sempre.

Grant

O texto original, em inglês
  • Amauri Gonzo é o Caronte das Viagens ao Fim da Noite, antifa, jornalista, palestrinha profissional e marxista heterodoxo. Foi editor de sites como Vice Brasil, + Soma e Ponte Jornalismo, repórter no G1 e mais. Já traduziu e revisou títulos para editoras como Veneta, Autonomia Literária e sobinfluencia, além de ser coordenador de programação da FLIPEI.

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